Aquando da dupla condenação da senhora presidente da Câmara pelo Tribunal administrativo de Leiria, houve quem alegasse que o cidadão reclamante tinha sido demasiado exigente. É sobretudo para quem assim pensou ou pensa que resolvi traduzir a crónica seguinte:
"Um bastonário tem o dever de facultar um defensor oficioso a um cidadão que tem esse direito, mas que ele considera um queixoso compulsivo? Eis uma questão que acaba de se colocar no caso do cidadão Pierric Durand, um queixoso cujo nome resolvemos alterar, temendo que ele nos possa processar.
Os seus baixos rendimentos mensais permitem ao citado cidadão beneficiar de um defensor oficioso, de um advogado gratuito. E ele usa esse direito sem moderação, para se queixar judicialmente de todos os que se atravessam no seu caminho: o arquitecto que devia transformar o seu estabelecimento numa pastelaria, mas terá cometido erros, o ex-patrão que terá recusado pagar-lhe, os gendarmes que lhe terão apontado uma arma, o presidente da câmara de Dinard que terá mandado dar-lhe uma sova.
Em 2005, Pierric apresentou queixa contra o referido presidente da câmara, acusando-o de ter içado a bandeira da cidade mais alto que a bandeira nacional. Em 2006, encontrou uma ficha telefónica entre as moedas de um euro entregues por um comerciante, o que o levou a apresentar três queixas: uma contra o citado comerciante, outra contra o banco que lhe forneceu as moedas e outra ainda contra o fabricante das fichas telefónicas.
Assim vai massacrando a vida dos advogados nomeados para o assistirem judicialmente. Exige que recusem determinado magistrado porque ele o acusa de ser parcial, que afastem tal técnico forense, porque desconfia dele. Adiamentos, incidentes processuais, troca de magistrados, pedidos de anulação e de contra-prova, são o lote quotidiano. Os casos simples de que os defensores oficiosos deviam tratar, transformam-se assim em casos tentaculares. Quando não executam os actos processuais suplementares e cronofágicos reclamados pelo queixoso, este processa-os judicialmente.
Entre 2009 e 2013, a Dra. Nathalie A. passou por tudo o acima mencionado, na qualidade de defensora oficiosa de Pierric Durand, nas diversas queixas deste contra um negociante de velharias. Em 2006, o negociante de velharias resolveu usar os punhos contra Pierric Durand. Desse confronto físico resultaram para Durand uma depressão, uma hospitalização psiquiátrica e quatro anos de incapacidade para o trabalho.
Em 2013, Pierric Durand recusa a assistência da Dra. Nathalie A., acusando-a de não ter requerido a transferência geográfica do seu pedido de indemnização, quando segundo ele o presidente da Comissão de indemnização às vítimas de infracções mostrava indícios de "animosidade". Criticou-a outrossim por não ter pedido a substituição do juiz que determinou a venda forçada da sua residência, e acusou-a enfim de conflito de interesses, porque o advogado de uma outra das partes tinha sido seu orientador de estágio.
Após o que solicitou ao bastonário de Dinan-St Malo a indicação de outro defensor oficioso. O bastonário escolheu sucessivamente três advogados, que recusaram a oferta. Perante o que o próprio bastonário se disponibilizou para defender ele mesmo o queixoso Pierric Durand, que teve então o desplante de recusar, alegando que "a junção das tarefas de advogado e de bastonário não lhe permitiriam defendê-lo capazmente."
O bastonário designou então outro advogado, o Dr. N. que Pierric acabou por não aceitar, uma vez que o advogado "exigia o envio do processo em suporte papel e não via mail", pelo que pretendia a assistência do Dr. H. Ofendido perante tantos pretextos fúteis, o Conselho da Ordem dos advogados de St. Malo decidiu, em 25 de Julho de 2014, "deixar de responder às solicitações repetitivas de Pierric Durand".
Que não seja essa a dificuldade, terá pensado Pierric, que imediatamente solicitou a nomeação de um defensor oficioso junto do bastonário de St Brieuc. Logo que o seu pedido foi deferido, apresentou queixa contra o bastonário de Dinan-St Malo. Na audiência, o bastonário Dr. Alain Laynaud, que entretanto sucedera ao bastonário anterior, explicou que não tem a intenção de indicar um advogado a Pierric Durand, "por se tratar de um queixoso compulsivo, semelhante a um outro descrito numa crónica do Le Monde, intitulada Abuso de ajuda judiciária".
O tribunal não concordou e ordenou que fosse designado um defensor oficioso, conforme solicitado por Pierric Durand. Pode ler-se na sentença que "não há base legal para entrar no debate da falta de seriedade dos processos intentados pelo queixoso, uma vez que o respectivo serviço competente não considerou que os citados pedidos sejam indeferíveis ou sem fundamento."
O bastonário Laynaud acatou, mas recorreu da sentença. Alegou que os pedidos de Pierric Durand "se transformam em abusos", e acrescentou que "Estando a justiça com grandes dificuldades para responder atempadamente aos queixosos de boa fé, seria particularmente sem fundamento dar razão ao cidadão Pierric Durand."
O Tribunal da Relação de Rennes deliberou, no passado dia 14 de Fevereiro. Refere o acórdão que "tal como o exercício de qualquer outro direito, o benefício do defensor oficioso a favor de uma pessoa com necessidade de ajuda judiciária não pode ser reconhecido logo que se transforma em abuso. Uma vez que Pierric Durand recusou as duas mais recentes decisões do bastonário, e abusou do direito conferido pela lei, o tribunal de recurso anula a sentença anterior."
Logo a seguir, Pierric Durand informou que evidentemente tenciona recorrer para o Supremo."
Rafaële Rivais, Le Monde, 20/05/2017, pág. 7
Tradução e adaptação de António Rebelo
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