quinta-feira, 4 de maio de 2017

Da arte de ser uma boa "caneta"

No vocabulário político francês contemporâneo, "caneta" é alguém, masculino ou feminino, que redige os discursos e outras intervenções de um político.
Desde que aqui revelei que um dos candidatos às próximas autárquicas em Tomar tem um monteiro como "caneta", andava à procura de textos sobre o assunto. Que acabei finalmente por encontrar, na sequência do comentado plágio de Marine Le Pen, ao reproduzir sem autorização alguns troços de um discurso de François Fillon.
Eis o que sobre o assunto se pode ler no prestigiado Le Monde online de hoje, assinado pela jornalista Faustine Vincent. É um bocado longo, mas leia que vale a pena. Penso eu...

Da arte delicada de ser uma boa "caneta"

"Após o plágio de um discurso de Fillon por Marine Le Pen, alguns dos que na sombra escrevem os discursos e outras intervenções das personalidades políticas, que para isso os contratam, aceitaram contar-nos as suas dificuldades, mas também as suas pequenas satisfações ligadas à função que exercem.

"Normalmente, nenhuma "caneta" faria uma coisa assim", comenta Marie de Gandt, ex-"caneta" dos discursos de Nicolas Sarkozy, que acrescenta ter ficado estarrecida quando ouviu Marine Le Pen usar, no seu discurso de Villepinte, no passado dia 1 de Maio, vários parágrafos da intervenção de François Fillon duas semanas antes.
Mas a Frente Nacional, a formação política de Le Pen, não aceita falar de plágio, defendendo a ideia de "uma assumida piscadela de olho a uma bela passagem de um discurso sobre a França, da parte de uma candidata de união, que assim mostra não ser sectária." 
Inesperadamente,  a "caneta" plagiada exultou. Ex-eurodeputado soberanista (1999-2009) e candidato FN nas autárquicas parisienses de 2014, Paul-Marie Couteaux advoga desde há anos junto de Marine Le Pen uma aproximação com a direita. O seu livro publicado em 1997 A Europa no caminho da guerra (Edições Michalon), serviu de trama ao discurso de François Fillon, que ele apoiou durante esta campanha presidencial.
Contactado pelo Le Monde, P.M. Couteaux reconhece que a candidata FN usou frases do seu livro. Nega porém qualquer contacto recente com ela, ou com Damien Philippot, uma das "canetas" habituais da candidata. Seja como for, P.M. Couteaux  tem esperança que este "acaso providencial" favoreça uma deslocação dos votos de Fillon na primeira volta a favor de Marine Le Pen."
"Há por vezes erros inspirados" acrescenta com ar malicioso. "Que interessa afinal que François Fillon tenha apelado a votar contra Marine Le Pen na segunda volta? O que importa é que esse acaso é afinal o símbolo da convergência entre a direita de Fillon e a FN."
Para aqueles que na sombra escrevem os discursos das personalidades políticas, um plágio equivale a um suicídio político, segundo confessou um deles. Nem mais nem menos. "Normalmente ninguém sobrevive a uma coisa dessas", acrescentou Harold Huwart, antiga "caneta" de Jean-Marc Ayrault, quando este foi primeiro-ministro socialista (2012-2014). Professor catedrático de História, diplomado de Normale Sup e da ENA, Huwart é categórico: "Trata-se de um erro grave e do pior que há na política, porque vai alimentar a confusão de programas e mostra a ausência de identidade do projecto defendido. É a própria negação daquilo que deve ser uma candidatura."
Marie de Gandt, que contou a sua experiência junto do antigo presidente Sarkozy, no seu livro "Sob a caneta" (Robert Laffont), é igualmente severa: "Parece-me algo inédito da parte de um candidato. É um erro profissional grave, porque equivale a apresentar o candidato, neste caso a candidata, como papagaio dos seus conselheiros. O que mostra também o amadorismo dos que rodeiam Marine Le Pen e  o seu cinismo. Estamos assim no grande supermercado do discurso."
Para Mehdi Ouraoui, uma das "canetas" de Benoit Hamon, o candidato socialista derrotado, este caso é muito revelador: "Mostra algo do deslize semântico e ideológico da direita. Mas para Marine Le Pen é embaraçoso..."
Por sua vez, solicitado pelo Le Monde, a principal "caneta" de François Fillon, Igor Mitrofanoff, recusou comentar o assunto, tendo enviado uma mensagem escrita: "Sempre considerei que as "canetas" devem manter o anonimato e, por outro lado, estou nos últimos tempos a tentar afastar-me da actualidade."
Ter um discurso idêntico para duas personalidades políticas, uma das quais afirma combater a outra, não é inédito entre as "canetas" da FN. Bertrand Dutheil de la Rochère passou a trabalhar também para Marine Le Pen, após longos anos ao serviço de Jean-Pierre Chevènement, do PS. "Escrevi com frequência a mesma coisa para os dois, disse-nos. Só o estilo é que era diferente. Mais popular e com frases mais curtas, para ela. Mais intelectual e rebuscado para ele." Nunca ninguém descobriu a tramóia.
Obrigada a ser discreta, a "caneta" consegue por vezes ironizar com aquele que a emprega. Marie de Gandt, que é de esquerda, viveu essa experiência junto de Nicolas Sarkozy, de direita, em 2012. "Diverti-me a escrever-lhe contra-discursos. Levava-o enquanto presidente a pronunciar frases líricas sobre os imigrantes em França, quando ao mesmo tempo, como candidato, ele dizia coisas bem diferentes. Sentia-me orgulhosa ao ouvir o meu presidente assumir um discurso republicano, quando afinal estava em desacordo total com o candidato." 
O poder das "canetas" reside na escolha das palavras, que nunca é anódina. Se a função é por  vezes considerada ingrata, "quer queiramos, quer não, temos sempre um papel político, quando utilizamos por exemplo nação em vez de pátria", diz-nos Marie de Gandt. Que de resto sempre procurou evitar o uso num discurso da expressão "a identidade nacional", que o presidente Sarkozy admirava tanto, por considerar algo de "equívoco e maléfico". "Para mim era um erro ideológico. Era mesmo O ponto litigioso, junto com a perda da nacionalidade".
Estes "ex-alunos da Escola Normal Superior que sabem escrever", segundo a definição do presidente Pompidou, asseguram não ser necessário ter a mesma ideologia política do patrão para lhe escrever os discursos. "Uma "caneta" ou se adapta ao candidato ou muda de emprego", afirma Bertrand Dutheil de la Rochère. Nada de estados de alma, ou o menos possível.
Radical de esquerda e candidato derrotado dos ecologistas nas legislativas de 2012, Harold Huwart também meteu na gaveta as suas opiniões políticas quando trabalhou para o socialista Jean-Marc Ayrault: "Se trabalhamos como "caneta" por ideologia, torna-se frequentemente uma fonte de dor e de frustração, porque as ideias que escrevemos nunca são as nossas. Muitas "canetas" sofrem por isso mesmo. Temos de redigir discursos todos os dias e sobre todos os assuntos. Para aguentar uma tal intensidade da palavra do outro, a única relação que se aguenta é a da dedicação a um político, num  quadro de valores comuns."
"Os que sonham vir a trabalhar para um político que partilhe as suas ideias, estão condenados a bater com a porta mais tarde ou mais cedo," conclui Harold Huvart, agora administrador civil e vice-presidente da região Eure et Loir.
Mehdi Ouraoui nunca sofreu de semelhante coisa. Partilhava com Benoit Hamon "a vontade de uma exigência republicana no discurso, apelando á inteligência dos cidadãos, enquanto todos os outros deixam falar a cólera." As "canetas" sabem por experiência que os discursos políticos falam da época. Apesar da derrota do candidato socialista, eliminado na primeira volta com um resultado historicamente muito baixo, Mehdi Ouraoui, ex-aluno da Escola Normal Superior, que agora faz parte do Conselho Nacional do PS,  garante que não tem remorsos.
Apesar de o plágio de Marine Le Pen não conter as fórmulas de choque, características da Frente Nacional, nem por isso deixa de ser perigoso, pensa Marie de Gandt. "Tal como os elementos de linguagem, tal repetição denuncia uma formatação insuportável, capaz de alimentar o desinteresse dos cidadãos pela política."

Faustine Vincent, Le Monde online, 03/05/2017
Tradução e adaptação de António Rebelo

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