terça-feira, 23 de maio de 2017

Saber ler, escrever e contar

Numa entrevista ao jornal Le Monde, o novo ministro da Educação, que em França não engloba o ensino superior nem a cultura, fez declarações que em Portugal seriam quase escandalosas. Jean Michel Blanquer, ex- director da prestigiada escola superior ESSEC, duas vezes reitor de academia e ex-nº 2 do ministério da Educação, disse nomeadamente "Se tivesse uma única prioridade, seria que todos os alunos de França saiam do ensino primário sabendo ler, escrever, contar e respeitar o próximo."
Pela leitura da informação portuguesa, não consta que em Portugal haja alunos que completem o ensino primário sem todavia saberem ler, escrever, contar em português e respeitar o próximo. Ou haverá mesmo? Creio que o melhor é mesmo traduzir integralmente as declarações do citado governante francês. Pode ser que venham a ser úteis a alguns leitores, uma vez que o país é tão pequeno...

Para encurtar, tornando menos fastidioso, publicam-se apenas as respostas do ministro. Cada leitor fará o favor de imaginar as perguntas. Em caso de dúvida: anfrarebelo@gmail.com

"Emmanuel Macron contactou-me durante a campanha eleitoral. Fiquei imediatamente impressionado pelo facto de termos em comum uma base de princípios, a começar pela ultrapassagem da divisão entre a esquerda e a direita, uma divisão que prejudica mais do que beneficia a escola pública. Partilhamos igualmente a ideia do pragmatismo ao serviço do progresso e a vontade de encarar com realismo aquilo que funciona e aquilo que não funciona."

... ...  "Não tenciono dirigir de cima para baixo, determinando e mandando publicar. Serei um ministro favorável às soluções locais mais adaptadas. A minha mensagem aos professores é de que não se sintam num colete de forças, que sejam autónomos, que inovem, que criem...
As turmas prioritárias de 12 alunos são o começo de uma reforma que visa 100% de aprovações à saída do ensino preparatório. Na maioria dos casos penso que teremos conseguido esses desdobramentos para Setembro próximo. Se tivesse uma única prioridade, seria que todos os alunos de França saiam da escola primária sabendo ler, escrever, contar e respeitar o próximo."

"Conforme já lhe disse, não vamos cometer o erro de impôr o mesmo modus operandi em todo o país. Ou seja, não vamos anular mas primeiro avaliar e, em caso de necessidade, evoluir. Não ignoro que nalgumas cidades os desdobramentos causam problemas de salas de aula disponíveis. Mas se noutras cidades  o mesmo dispositivo funciona satisfatoriamente, devemos ser capazes de aceitar tal evidência.
Há um mau hábito francês, de interpretar tudo negativamente. Reduzir o número de alunos por turma é uma boa notícia! O "novo optimismo francês" que tem muita importância para Emmanuel Macron é exactamente o que pretendo difundir."

"Quanto aos ritmos escolares, nada de certezas. Entre a semana escolar de 4 dias e a de 4 dias e meio, não conheço nenhum estudo conclusivo sobre o impacto nos resultados finais."

"Não vos escapou que essa reforma do 3º ciclo do básico está longe da unanimidade. Alguns aspectos são interessantes, a começar pela maior autonomia concedida aos estabelecimentos. Mas chocou-me a supressão de cima para baixo de algumas coisas que funcionavam bem, como por exemplo as turmas bilingues, as secções europeias ou a opção latim. E disse-o em tempo útil à minha antecessora. Houve quem utilizasse o argumento da igualdade de oportunidades de maneira inadequada, afirmando que esses dispositivos criam segregações, quando afinal permitem tornar atractivas escolas que antes não eram.
Vamos portanto restabelecer as turmas bilingues, valorizar o latim e o grego, que são a base da nossa civilização e da nossa língua. Deixemo-nos de considerar que estas disciplinas tornam mais rígidas as diferenças sociais. São pelo contrário utensílios de promoção para todos."


"A interdisciplinaridade é muito interessante, mas deve vir do próprios actores, os professores e os alunos. É algo que não se pode impôr por decreto. É também para isso que vamos conceder mais autonomia aos docentes."

"Não vou exigir nenhum regresso ao passado nas escolas. As que quiserem manter-se no actual quadro de reforma do 3º ciclo, poderão fazê-lo. Trata-se afinal de regressar ao espírito inicial da autonomia. O mais importante é preservar a coerência para os alunos, agindo de modo a que a sua escolaridade seja contínua e eficaz.
Não temos qualquer necessidade de uma nova lei de orientação escolar."

"Evitemos as caricaturas. Considero-me desde sempre um professor, que agora se sente muito honrado como ministro. Mas a minha convicção continua a ser a mesma de sempre: a educação é um vector do progresso humano. É esse o meu fio condutor."

"Estamos talvez num momento histórico em que não é só a divisão esquerda-direita que deve ser  ultrapassada. É também indispensável conciliar a tradição e a modernidade, a exigência e a boa vontade. Conseguir essa síntese francesa que, no meu entender, é a chave de tudo. Quanto a mim, inspiro-me em pensadores extremamente diferentes de Edgar Morin a Régis Debray, entre muitos outros. Recuso-me portanto a praticar o insulto ou o sectarismo."

"O amor à pátria e o ensino da história não se devem confundir, mas estão sempre relacionados. O mais importante é a estruturação do ensino e para isso é indispensável uma vertente cronológica, pelo menos até à conclusão do ensino básico. Vamos reforçar essa dimensão cronológica.
As crianças têm necessidade de pontos de referência históricos. O facto de saber de cor os reis de França não é algo ultrapassado. Que depois aprendam que tal ou tal aspecto afinal é mais complicado do que pensavam, é já uma tarefa para o ensino de adolescentes e adultos."

"Mas não vai haver alterações nos programas de história. Vamos antes analisar e debater o que ocorre em termos práticos no ensino da história, tendo em conta os recursos pedagógicos, a formação dos professores e os indispensáveis debates científicos. Vamos também estudar a situação noutros países. Porque não têm os mesmos problemas dos franceses?"

"O nosso principal combate será contra as desigualdades sociais à partida. Vamos concentrar-nos antes de mais nos primeiros anos de escolaridade. Aí onde os alunos chegam já com grandes diferenças de vocabulário. Esses primeiros anos devem ser sobretudo um banho de língua materna."

"O experimentalismo, o recurso à ciência e as comparações internacionais serão os três pilares do meu método de trabalho. Quando se olha para lá das nossas fronteiras, constata-se que os melhores sistemas escolares nem sempre são muito diferentes do nosso. A grande diferença é que sabem inculcar confiança.
Em França não existe uma saudade da escola de antanho, mas sim uma nostalgia da confiança que havia em relação à escola. Trata-se portanto de restabelecer essa confiança. Os professores devem estar seguros de que serão sempre respeitados. Os alunos devem ter confiança em si próprios. É aí que pretendo chegar. Se o conseguir, ficarei muito feliz."

Entrevista conduzida por Mattea Battaglia, Luc Cédelle e Aurélie Collas, Le Monde, 21/22 de Maio, página 6
Tradução e adaptação de António Rebelo -Tomar a dianteira 3

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