Festa dos tabuleiros
A realidade nem sempre é agradável ou sequer consensual
Pelas poucas reacções que já chegaram aqui ao Atlântico sul, calcula-se que a crónica anterior terá sido tudo, menos pacífica. E como habitualmente, o culpado é o malandro do autor, que devia estar calado, segundo algumas consciências locais. Compreende-se. Ninguém esperava uma coisa daquelas. A Festa grande tomarense posta em causa na sua essência, por gente que nem se sabe quem seja. Uma vergonha, para os mais fanáticos.
Como qualquer outro conjunto de cidadãos vivendo em comunidade de interesses, os tomarenses têm as suas qualidades, mas falta-lhe uma que é básica: Não são tolerantes. Não aceitam ideias ou vivências diferentes das suas, nem consentem que alguém as possa ter e expor livremente. Abundam os casos, pelo que não adiantaria expor exemplos. Apenas irritaria ainda mais alguns conterrâneos. Ninguém gosta de "ficar mal na fotografia".
Caso fossem tolerantes e aceitassem pontos de vista diferentes, os ardentes defensores da Festa dos tabuleiros teriam ficado menos surpreendidos com a crónica de ontem, na qual se cita alguém que apenas aceitou, sob anonimato, relatar parte do que se pensa sobre os tabuleiros, nalguns ambientes culturais longe das margens nabantinas.
Teriam ficado menos surpreendidos porque se lembrariam decerto da conhecida frase de Fernando Nini Ferreira, em "Coisas simples da terra tomarense": "Os tabuleiros são lindos, a festa é maravilhosa, os de fora gostam muito, mas os tomarenses vêem a festa com outros olhos." Por conseguinte, se vêem a festa com outros olhos, é porque há diversas maneiras de ver, que não são forçosamente coincidentes. Onde uns vêm beleza, outros verão mau gosto. Onde uns vêem generosidade, outros encontram desperdício, estragação, por exemplo.
Deixando de lado a questão levantada pela nossa fonte, sobre o papel da mulher na sociedade actual, os tabuleiros têm outras vertentes pouco aceitáveis por quem não seja tomarense-fanático-dos-tabuleiros. A primeira já foi abordada nestas colunas. Trata-se das "Ruas populares ornamentadas", uma tradição que remonta aos tempos da monarquia, quando se enfeitava o caminho percorrido pelo rei e a sua corte, para chegar ao Convento. Há crónicas disso mesmo.
Uma vez que já não há rei nem corte, e que o cortejo nem sequer passa por essas ruas, a ornamentação, que custa centenas de milhares de euros, serve para quê? Apenas para turista ver. O que devia implicar um custo de entrada, como acontece até no Convento, que é do Estado e já está pago há séculos. Mas não. É tudo à borla, pago pelos contribuintes tomarenses, através da autarquia, toda contente porque julga estar a comprar votos, esquecendo que os turistas não votam em Tomar, pelo que entram na categoria dos "peixes velhos", bem conhecida dos pescadores desportivos: "comem o isco e cagam no anzol".
É caso único? Olhe que não. Pegue-se no próprio cortejo, este ano com 600 tabuleiros, ao que se anuncia. Ou seja, um tabuleiro por cada 60 habitantes, os quais também já têm que sustentar um funcionário municipal por cada 61 habitantes. Deixando de lado os cestos, as coroas, as rodilhas, as toalhas e a mão de obra especializada, que são reutilizáveis, ainda restam as flores, o arame e o pão.
Para abreviar a leitura, foca-se unicamente o caso do pão, afinal o ponto central da festa. Os tabuleiros mais não são que um cortejo, ou um desfile de oferendas, em tempos organizado sob a égide da Santa casa (que ainda hoje guarda as coroas), com as oferendas das camadas possidentes da população, tendo em vista "matar a fome ao povo". Essa fase já passou, felizmente. Hoje em dia já não se pode dizer que há fome em Portugal, ainda que nem todos vivam como desejariam.
Donde resulta que o pão dos tabuleiros já ninguém o quer, a não ser nalguns casos como recordação abençoada pelo sr. vigário. O resto vai para o lixo, tal como as flores, uma vez desmanchados os tabuleiros, porque já não é comestível. Armados com muita antecedência, porque são poucos e cada vez menos os bons armadores de tabuleiros, no dia do grande cortejo o pão já está rijo como pedra, o que obriga a comprar outra fornada para distribuir com a "peza" no dia seguinte. Peza que também inclui carne, doada pelos hipermercados, e já não proveniente do abate dos bois comprados antigamente pelo mordomo em Santa Cita, Ainda há o cortejo do mordomo, mas é só para fazer de conta, tal como os carros de bois no cortejo.
E daí? interrogarão os freires da festa. E daí, 600 tabuleiros a 30 pães cada um, dá a bagatela de 18.000 pães de 300 gramas, num total de 5, 4 toneladas de farinha importada, que vão para o lixo. Sem contar com a energia gasta nas sucessivas fornadas, nem com a mão de obra. Em tempo de crise, de poupança, parece-lhe normal, numa festa que custa balúrdios, mas em que praticamente ninguém paga para ver?
Não há aqui qualquer intenção de defender a UNESCO ou a DGPC, ou quem quer que seja. Apenas conceder-lhes o direito a pontos de vista diferentes, tão válidos como os desta página, ou os da Comissão central dos tabuleiros, ou quaisquer outros. Lembrando, para o que convier, que na sua mais recente reunião, em Marrocos, o comité da UNESCO decidiu retirar a classificação de "património imaterial" a um multicentenário desfile belga, que na edição do ano passado incluiu um carro alegórico considerado racista. Não deveria portanto surpreender que possam emitir reservas a um outro desfile, em que é sempre a mulher a carregar com um tabuleiro de 15 quilos à cabeça. Voluntárias? Ninguém duvida, mas mesmo assim... As mulheres árabes também são voluntárias para tapar a cabeça, o que não agrada nada às europeias do norte, ou às americanas. Que se pudessem...
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