terça-feira, 20 de dezembro de 2022


Ética republicana
 
Generosidade estranha

Têm razão os leitores mais atentos, que me alertaram para a falta de sensibilidade de alguns escritos  recentes. Não se pode ter tudo, e eu entre sensibilidade e frontalidade... Após uma introspecção mais profunda, penitencio-me! Fui demasiado agreste e injusto nalgumas crónicas recentes. Por exemplo, naquela sobre as mentiras na Assembleia Municipal. Sendo da área da política, onde em geral vale tudo, a nossa senhora presidente a bem dizer não mentiu. Limitou-se a ajeitar a verdade. Transformou uma realidade incómoda, numa verdade conveniente para ela.

No caso das festas e eventos, ou nas obras municipais, tão pouco há esbanjamento de fundos públicos. É apenas generosidade. Os custos resultam em geral exorbitantes, mas é apenas por se tratar de OGAs, acrónimo de "obras de grandes alcavalas", entre as quais avulta o elevado uso de luvas. Há-as para tudo: luvas de preparação, luvas de execução, luvas de acompanhamento, luvas de observação... E as ditas estão com preços pelas ruas da amargura. Deve ser da inflação. Quando a escolha é muita, o corruptor desconfia – Observador

A prova de que há sempre boa intenção generosa, por parte da nossa senhora presidente e seus acólitos, está naquele gesto merecidíssimo de duplicar a tolerância de ponto do governo para os cansados funcionários municipais, por ocasião do Natal e Ano Novo. Foi quando me debatia entre a opção generosidade e a opção reles compra de votos e paz laboral, que me recordei de outra faceta, até aqui praticamente oculta, da nossa senhora presidente: -Também parece ser milagreira. Há quase dez anos que vem conseguindo o milagre concelhio da ignorância total. Para não dizer cegueira, sobre a qual escreveu Saramago.

Eis um exemplo. A dada altura, no estrito quadro da legislação vigente, um funcionário municipal requereu e obteve uma licença sem vencimento de dois anos, nos termos da Lei.  Passados esses dois anos, fracassado o seu projecto inicial, o mesmo funcionário requereu o regresso ao seu lugar e às suas funções, em conformidade com as normas oficiais.

Para espanto seu, a nossa senhora presidente indeferiu o requerimento, assim impedindo o funcionário de auferir o seu vencimento, o que lhe provocou graves dificuldades económicas, como se calcula. Julgando-se injustiçado, o funcionário em questão recorreu ao foro judicial competente, no caso o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria. Após meses e meses de espera, o tribunal deu-lhe razão, ordenando à Câmara a reintegração e o pagamento dos vencimentos, desde a data em que deveria ter sido readmitido ao serviço.

Descontente com a sentença, a nossa senhora presidente encarregou então os serviços camarários competentes de recorrer para a 2ª instância, que passado mais de dois anos emitiu um acórdão, publicado na informação local tomarense, dando mais uma vez razão ao funcionário injustiçado. O que não obstou a novo recurso da nossa senhora presidente, desta vez para o Supremo Tribunal Administrativo, aonde ainda se encontra, para decisão final irrevogável.

Quem isto lê pode conjecturar, sem grande esforço, os prejuízos causados ao infeliz funcionário, há anos sem vencimento mensal, e as despesas do erário público com processos e advogados, sem que se saiba até hoje porquê ou para quê. Nem sequer se conseguiu ainda apurar o fundamento legal da insólita atitude camarária. Simples retaliação? Mas contra quê ou contra quem? Porquê? Continua a não haver qualquer explicação, a coberto da consagrada expressão "está em segredo de justiça". E mantém-se uma dúvida fulcral: Se quando o Supremo aprovar o acórdão definitivo,  dando novamente razão ao funcionário lesado, como tudo parece indicar,  caso a nossa senhora presidente esteja ainda no poleiro, vai aceitar finalmente a situação? É que não lhe restará outra hipótese. Ou estará a pensar no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos? Era só o que faltava. Depois de reincidir na injustiça, sentir-se injustiçada! Mas é o estilo.

O mais extraordinário disto tudo é a tal suposta capacidade milagreira da nossa senhora presidente, ao longo de quase dez anos. Numa urbe de 36 mil almas,  ninguém sabe de nada, ninguém viu nada, ninguém leu nada, ninguém ouviu falar, ninguém se lembra de nada, ninguém fala sobre o assunto, quanto mais agora protestar. É o milagre da ignorância conveniente. 

Estava até pensando contactar o Vaticano, para indagar como iniciar o processo de beatificação da senhora, uma vez que parece já haver um milagre, quando me recordei que o camarada Estaline mandou matar milhões de compatriotas, e apesar disso morreu no poder, sendo sepultado com honras de Estado, e alcunhado de "pai dos povos". Só uma década mais tarde um seu sucessor resolveu pôr a boca no trombone, em pleno congresso do PCUS, e foi o que se sabe. Tudo porque, como diz o nosso povo, na sua língua chã mas rigorosa, "quem tem cu tem medo". Tanto na agora ex-União Soviética, como em Tomar.

Poderão os apaniguados mais fanáticos, à falta de melhor argumentação, alegar que, sendo infeliz, é caso único esse erro e o pesado silêncio da população. -Ai é? Então já se esqueceram da expulsão do vice-presidente Serrano e do chefe de gabinete, que até hoje não abriram o bico, mantendo-se o eleitorado mudo e quedo? Não sabem de nada, querem ver?

Malograda assim a minha tentativa de iniciar o processo de beatificação da nossa senhora presidente, com o fundamento do milagre da ignorância total, da sua governação generosa, dos ajustes directos e das custosas obras de S. João, em prol da Fé e do Senhor, resta-me a hipótese de aconselhar o funcionário municipal em causa, vítima dos abusos da presidente e da fingida ignorância dos conterrâneos, a dirigir-se ao Registo Civil para aí solicitar uma alteração do seu nome. Em vez de José Gaio, José Gaio Ofendido e Ignorado. Fica mais realista. E não choca. Mártir seria mais forte ainda.


2 comentários:

  1. "Quem se mete com o ps ,leva"
    Até um dia ,depois vira o bico ao prego !

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  2. Dado que citou o falecido socialista Jorge Coelho, aproveito para citar o meu falecido amigo Mário Soares: "Cada cidadão tem direito à indignação, e eu estou indignado." Com a perseguição e com a passividade da população.

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