quarta-feira, 28 de dezembro de 2022


Cultura

Um grafito contra a burguesia

Mandaram-me a imagem acima, lastimando que ainda exista, apesar do tempo e das chuvas. Já nem me lembrava de tal nódoa na paisagem urbana da minha amada terra. O clima agradável e os sete mil quilómetros de afastamento, facilitam o olvido, mesmo continuando a usar a mesma língua.
Nunca percebi de onde raio veio tão infeliz ideia, que ainda por cima adultera a História. Nunca houve "velhos do Restelo". Apenas um, como personagem camoniano,  criticando as navegações portuguesas e os "fumos da Índia". Qual a relação com o muro de suporte da antiga horta Torres Pinheiro? Talvez as águas do Nabão, se considerarmos aquela rampa de cimento como o areal de Belém. Tem tudo a ver, não tem? Só falta aparecer por ali um dia destes o tio Cèlito a andar de canoa...
Acresce que os alcunhados "velhos do Restelo" têm todo o aspecto de turistas burgueses britânicos, de regresso ao seu país. Aquele cavalheiro de chapéu de coco é british pura lã. E a lady ao lado, com ar desvairado, idem. Que fazem ali? Ignoro. Mas conhecendo um bocadinho os súbditos de sua majestade britânica, muito menos calados que os tomarenses, são bem capazes de estar a preparar-se para um protesto contra o encerramento do parque de campismo, ainda hoje mal explicado.
Já antes da palermice do grafito anti-burguesia, (não de quem o executou, mas de quem encomendou ou deixou fazer, em nome da liberdade criativa e da falta de sentido crítico), houve outra parvoíce de maior espanto. Aquela horta Torres Pinheiro foi expropriada pelo então presidente da câmara, capitão Fernando de Oliveira, um dos tenentes fascistas do golpe militar de 28 de Maio de 1926, mas também o tomarense que até hoje mais fez por Tomar. Nessa altura, anos 50 do século passado, o situacionista Fernando Ferreira e o comunista Lopes Graça protestaram contra a municipalização da horta. Sete décadas mais tarde, ei-los em amena conversa nos terrenos que não queriam públicos, enquanto o autor da expropriação foi relegado para um sítio recôndito da Várzea Pequena. Por quem? Vá-se lá saber, numa terra onde praticamente ninguém se assume, nem dá a cara. Em Tomar, a culpa morre sempre solteira. Excepto tratando-se de quem ouse criticar a maioria PS. Esse já é culpado, mesmo antes de abrir a boca. Culpado de quê? Depois se vê.
Temos assim uma originalidade no país, que felizmente as televisões ainda não descobriram. Os "novos velhos de Restelo", agora certamente "velhos do Nabão" disfarçados de lordes ingleses, observando o rio transformado em emissário ocasional dos esgotos de Ourém, e protestando contra os excrementos de Seiça, o que facilita o esquecimento de muita merda tomarense. Parafraseando já não sei quem, não se nasce nem se cresce impunemente em Tomar. Cuja população tem  muitas qualidades, não duvido. Pena que a principal não seja de certeza o discernimento. Infelizmente.
É isso que o estranho grafito, com um cisne branco do lado direito, também mostra. Como bem escreveu Einstein, "Conheço  apenas duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Em relação ao Universo, não tenho a certeza."

ADENDA

É pouco provável que o grafito venha a desaparecer. As tintas parecem boas e os autarcas da maioria são "de antes quebrar que torcer", como se isso fosse sempre uma virtude. Há no entanto alterações climáticas tão evidentes, ali para as bandas da Praça da República, que  não é de excluir um súbito módico de realismo forçado. 2025 é já ali adiante...
Nesse caso, para substituir o grafito actual, propõe-se um outro, com quatro ambulâncias novas e a etiqueta "Um exemplo de boa gestão local". Para sossegar a população agradecida, que já percebeu que os eventos e os grafitos servem para muita coisa, mas por enquanto ainda não transportam doentes para os hospitais. Por isso dirá: "-Vá lá! Desta feita pelo menos lembraram-se das ambulâncias! Haja esperança!"

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