domingo, 22 de janeiro de 2023

Vida local

"L'enfer c'est les autres" 

Ao escrever "l'enfer c'est les autres", Sartre nunca terá decerto imaginado que, um dia mais tarde, numa pequena cidade decadente, a sua afirmação seria muito praticada por cidadãos que embora saibam ler e escrever, nem sequer a conhecem. Apesar disso, é aí que estamos. Num quadro urbano cuja principal capacidade teórica é o passa culpas. Ninguém assume. A culpa é sempre dos outros. Ou morre solteira. Nem lhes passa pela cabeça que, tanto quanto se possa saber, se o inferno são os outros, para esses outros nós também somos o inferno.
Na decadente Tomar, somos tão poucos a discorrer, que tudo se torna pessoal, familiar, por maiores que sejam os esforços para indiferenciar. A tal ponto que gente inteligente, porém com limites evidentes, se julgou no direito de questionar a sanidade mental de quem não partilha, e antes critica, as ideias e políticas dominantes, enquanto outros recorriam ao pior insulto para calar um discordante. E a maioria mantinha um confortável silêncio. Querem melhor exemplo do "l'enfer c'est les autres"? Foucault disse algures ser muito difícil, quase impossível, que alguém educado de modo autoritário, alguma vez possa vir a ser realmente livre, quanto mais não seja por manifesta incapacidade de elaboração mental.
E aqui estamos, com uma morte na consciência, julgando saber quais as causas, mas sem ousar apontar culpados porque, escrevendo para gente que apregoa (quando tem arcaboiço para tanto), "não digas tudo o que sabes e pensa bem aquilo que dizes." Medo? Apenas prudência. Afinal, Tomar é terra de grandes façanhas, pensam os tomarenses ferrenhos, mas em 1920 tinha 37 mil habitantes, e um século mais tarde pouco mais tem, sem que alguém ouse explicar como e porquê. 
Entretanto, a pouco mais de 40 quilómetros, Leiria passou de 30 mil para 130 mil habitantes em pouco mais de meio século, se calhar porque para aqueles lados "l'enfer, ça n'existe pas", o que os leva a trabalhar, em vez de arranjarem desculpa para tudo.


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