terça-feira, 27 de julho de 2021



Para os meus queridos conterrâneos, convencidos de que a candidatura dos tabuleiros a património imaterial da UNESCO era coisa fácil; tal como para aqueles outros que resolveram pagar sem olhar a quem, para elaborar o respectivo processo de candidatura, que pelos vistos naufragou algures, no mar da apagada e vil tristeza lusa, referida por Camões, a leitura atenta do texto seguinte pode ser bastante útil. Caso ainda estejam dispostos a aprender, bem entendido. Se é que alguma vez estiveram. Fixem desde já que a candidatura de Nice foi preparada durante sete anos, tendo contado com o apoio do presidente da República, Emmanuel Macron.

TRADUZIDO DO LE MONDE ONLINE, por António Rebelo, ancien de l'Université de Paris VIII

"NICE E O "ESPÍRITO DE VILEGIATURA" 
NO PATRIMÓNIO MUNDIAL DA UNESCO"

Gilles Rot, correspondente do Le Monde em Marselha

"Nice, a marginal, conhecida como a alameda dos ingleses, os palácios, as palmeiras, as igrejas russas. os hotéis Art déco e os casinos, entram oficialmente na lista do Património mundial da UNESCO. No passado dia 27 de Julho, os 21 países membros do respectivo comité reconheceram o "valor universal excepcional" da capital da Côte d'Azur e da sua herança arquitectónica, paisagística e urbanística, que se expandiu entre 1760 e o início da segunda guerra mundial. A prefeitura dos Alpes marítimos faz parte desta classificação restrita, que não dá direito a qualquer financiamento específico, na qualidade de "cidade de vilegiatura de inverno de Riviera". "Nice reivindica a invençao deste conceito de Riviera, agora reconhecido pela UNESCO como a expressão  de um grande fenómeno societal: a aparição de uma actividade puramente hedonista, tendo como objectivos o bem estar e a felicidade, a que agora chamamos turismo e que na época se designava vilegiatura", explica o ex-ministro da cultura Jean-Jacques Aillagon, que desde 2014 é o presidente da missão "Nice património mundial", a pedido do presidente da câmara Christian Estrosi.
Durante quase dois séculos, o fenómeno riviera modelou o desenvolvimento urbanístico da cidade, dotando-a de palácios, vivendas, moradias, hotéis de luxo, imóveis de férias e lugares de culto. Uma herança cosmopolita que, além do património francês e italiano, mistura influências dos seus riquíssimos visitantes. ingleses, russos, austro-húngaros, ou mais tarde americanos, que na esteira dos csares, da raínha Vitória de Inglaterra, ou da imperatriz Josefina, passam o inverno na costa

UM MODELO INTERNACIONAL

Uma especificidade que também transformou a aglomeração urbana de NIce num modelo internacional, difundindo a sua importância a outros locais balneares, de Optija, na costa dalmata (Croácia), a Ialta na Crimeia (Ucrânia). NIce junta-se assim, nesta classificação da UNESCO, a outros sítios franceses, como o Porto da Lua (Bordéus), Le Havre, Vichy (inscrita no painel das "grandes cidades termais europeias", no passado dia 24 de Julho), ou ainda, para mencionar alguns vizinhos da Região Provence-Alpes-Côte d'Azur, o Palais de Papes em Avignon e as construções romanas de Arles e Orange.
Diferido um ano, devido à pandemia mundial, o estudo do dossier de Nice, apresentado pela França para 2020, por decisão do presidente da República Emmanuel Macron, teve lugar em Fuzhou (China), onde a UNESCO realiza actualmente a 44ª sessão do seu Comité do Património Mundial. Houve um longo debate por video-conferência, durante o qual o Conselho mundial dos monumentos e dos sítios (ICOMOS), que sempre analisa os dossiers, emitiu uma decisão de adiamento, solicitando a revisão do perímetro a classificar e considerando que a França ainda não tinha implementado uma estrutura de protecção da área a classificar.
Apesar disso, os governos que participavam na decisão, entre os quais, a Rússia, historicamente ligada a Nice, consideraram que a França se antecipara aos reparos levantados, nomeadamente criando um sítio patrimonial de relevo, dotado de uma área de valorização da arquitectura e do património (Avap), validada em 30 de Junho pela Metrópole NIce-Côte d'Azur, e pela prefeitura dos Alpes Marítimos, no dia 15 de Julho. Além disso, Nice aceitou retirar da candidatura a Praça Garibaldi, praça real, e comprometeu-se a mandar fazer um mapa actualizado do perímetro agora inscrito, antes de 1 de Dezembro de 2021.
O referido perímetro agora classificado Património mundial tem 522 hectares, englobando uma banda litoral que inclui a  totalidade da alameda dos ingleses, o porto de Nice até à zona do Cap. Estende-se igualmente pela margem direita do rio Paillon, com a colina de Cimiez, com muitas moradias e palácios, mas também pela margem esquerda e colina do castelo, urbanizada como parque público logo no início do século XIX, e que oferece os melhores panoramas sobre a baía dos Anjos. A esta parte central acrescenta-se uma zona tampão de 4.243 hectares, que vai até às comunas de Falicon, Saint-André-de-la-Roche, Aspremont e Tourrette-Levens. O núcleo histórico de Nice não foi incluído na classificação, por fazer parte do desenvolvimento anterior da cidade.
"Até 1750, Nice mantém-se nos seus limites medievais, vivendo designadamente do comércio de produtos agrícolas. Depois estende-se na margem direita do rio,  conquista a costa marítima e a colina de Cimiez, graças à nova economia que é a vilegiatura de inverno", especifica Jean-Jacques Aillagon que, com a sua equipa, convenceu o presidente da câmara Christian Estrosi a alargar a candidatura para além da simples Promenade des Anglais.
Nascido em Nice e definindo-se como um apaixonado pela cidade, Christian Estrosi começou a considerar o processo de candidatura desde que ganhou a câmara, em 2008.
"Esta vitória constitui um forte incentivo para implementar uma política de renovação e de preservação da herança edificada", assegura quem já madou demolir algumas construções de mandatos anteriores, como a central de camionagem ou o teatro nacional e o palácio dos congressos Acropolis, para os substituir por uma correnteza verde. "Vejo igualmente este sucesso como uma meta pessoal, prossegue Estrosi. Pretendia que reconhecessem o património extraordinário de Nice. Acabo de alcançar aquilo que pretendo legar aos meus concidadãos. Esta parte da cidade é agora intocável. Com ar contente, reconhece ter vivido com emoção as últimas horas antes de conhecida a decisão do comité, após aquilo que designa como "um autêntico percurso do combatente" .
Enquanto Jean-Marc Governatori, líder dos ecologistas vê com agrado a decisão da UNESCO, Philippe Vardon, da extrema-direita (RN), principal opositor do presidente da câmara,  mostra-se bastante crítico. "É Nice do século XIX, a cidade europeia modelada pela nobreza russa e inglesa, que acaba de ser reconhecida, não é Christian Estrosi", apontando na decisão da UNESCO "um incentivo para preservar a alma de Nice histórica, uma cidade na qual, fora do perímetro agora inscrito, se está a construir em excesso."


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