Velhos atavismos, que é como quem diz hábitos velhos e relhos, dos quais nem se dão conta os menos habituados a reflectir, que são a esmagadora maioria. O notório desinteresse e até o completo alheamento dos tomarenses pelos problemas locais (excepto calhandrices, insignificâncias e afins), não é de hoje, embora tenha sido muito reforçado por 48 anos de regime, cujo provérbio preferido era "O calado foi a Lisboa e veio sem pagar".
Não é o momento nem o meio para tentar redigir uma resenha histórica sobre este tema. Seja-me no entanto permitido dissertar um pouco sobre um facto histórico bem conhecido e um detalhe a ele ligado, mas até agora pouco difundido. Na sequência da batalha de Alcácer Quibir (Marrocos), em 1578, na qual desapareceu o jovem rei D. Sebastião, o soberano espanhol Filipe II enviou tropas comandadas pelo Duque de Alba, tio de D. Sebastião, para ocupar Lisboa. Logo a seguir empreendeu a longa viagem por terra que o devia conduzir à capital portuguesa, onde tinha previsto ser aclamado rei de Portugal (em Portugal os reis sempre foram aclamados e nunca coroados, aquando da subida ao trono).
Quando o rei castelhano e a sua numerosa comitiva passavam pelo vale do Tejo, um mensageiro veio informar que havia peste em Lisboa. Atemorizado, o soberano mandou procurar uma localidade onde houvesse acomodações para todos. A escolha recaiu em Tomar, cujo Convento de Cristo era então, conjuntamente com o Mosteiro de Alcobaça (demasiado afastado) o único com dignidade para receber o rei e capacidade para alojar a sua numerosa corte.
Segundo o cronista real, que acompanhava o séquito, o choque foi rude. Mais de 15 séculos após Atenas e Roma, mais de 8 séculos após os árabes, a sede da Ordem de Cristo, que tinha barcos da Índia ao Brasil e ao Japão; que a era a ordem de cavalaria mais rica do país e que detinha o comércio com a Índia, a África e o Brasil; essa faustosa Casa Grande da Ordem tinha instalações sanitárias e outras, demasiado rudimentares e sem água corrente!
Chocado, uma vez aclamado, o rei Filipe 1º de Portugal logo mandou fazer um projecto para o abastecimento de água corrente ao Convento. 32 anos mais tarde, em 1613, a água vinda dos Pegões já brotava no Claustro principal, nos vários lavatórios entretanto espalhados pelo Convento, na cozinha e nas hortas. A água das cisternas deixou então praticamente de servir.
404 anos mais tarde, a água dos Pegões já não corre no Convento há mais de três décadas, o aqueduto carece de reabilitação urgente, sob pena de ruína, e as instalações sanitárias são poucas, mal situadas e mal sinalizadas. Como é óbvio, os tempos mudaram tanto que já ninguém pensa que o actual rei de Espanha, Filipe VI, seguindo os passos do seu antepassado, possa vir a Tomar resolver de novo esse e outros problemas. O que é pena, pois os tomarenses continuam tão desinteressados das mazelas da sua terra como no tempo de Filipe II e do sumptuoso Convento, todavia sem água corrente, nem instalações sanitárias capazes. Imagine-se o que terá sido, em termos de cheiro ambiente, o Claustro das Necessárias, sem água corrente e portanto sem autoclismos, mas usado diariamente por mais de uma centena de pessoas.
Velhos atavismos...
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