quinta-feira, 24 de novembro de 2016

De tasca a café, assim vai a Assembleia, ó Zé!



Mário Cobra

O comum dos munícipes deve nutrir compreensível beneplácito por quantos descontraídos senhores deputados municipais, ao longo dos tempos, sempre participaram nas sessões da respectiva assembleia como se  estivessem num recreio. Isso mesmo - num recreio. Dirão “Vamos ali passar um bocado”. Soa bem. Vamos ali passar um bocado. As cadeiras são razoáveis, há água engarrafada nas mesas (antes das restrições havia), os pombos esvoaçam na praça pública. O costume, nestas descrições. Desabafo entre dentes dos deputados “Então, pá, acusam-nos do tu cá-tu lá, então, pá, queriam que levássemos isto a sério?”. Referem-se ao lamento expresso no “Tomar na rede”, que assim se transcreve Quem assistiu à última reunião da assembleia municipal de Tomar poderia pensar que, por vezes, estava a assistir a uma conversa de café”.
Rebuscando no arquivo das memórias, se agora parece um café, já foi em tempos acusada de parecer uma tasca, ó Zé!. Há c´anos, bons tempos que já não voltam, talvez por excesso de novas posturas de liberdades ao peito, um grupo de deputados municipais levava petisco para o recreio das nocturnas sessões da digníssima Assembleia Municipal. O garrafão de vinho caseiro, os enchidos de porco doméstico, o pão de fabrico próprio, que um dos deputados era padeiro. Enquanto os mais compenetrados parlamentares dissertavam retóricas sobre os alegados e chatos problemas do concelho, no gabinete anexo os mais descontraídos ferravam o dente no petisco, empinando tinto do bom, daquele ainda feito com uvas. Às tantas, uma bela noite, estranhou-se a falta de quórum para uma votação. Soou então a  pergunta incómoda: “Mas onde estão os deputados municipais?”. E logo a resposta, numa voz serena “Estão ali no gabinete ao lado, a encher a mula e a emborcar uns canecos”. Atente-se nesta subtileza de estratégia autárquica “Encher a mula e emborcar uns canecos”.


Chamados à pressa, ainda limpando os beiços, sentaram-se com ar compenetrado, ouvindo-se “Vamos lá então votar”, logo complementado com o gracejo de um deles “Vamos mas é arrotar”. Os folgazões acabavam por aprovar, mas sabiam lá bem o quê. Em vez de aprovar a proposta, preferiam aprovar a pinga.
Assumimos que o episódio foi por nós mais valorizado porque, enquanto representantes da comunicação social, nunca fomos convidados a proceder à cobertura jornalística do conluio, sempre discriminados neste entremeio gustativo. Lembras-te dessas farras, ó Zé? Sentados no espaço reservado à comunicação social, só os víamos passar, os senhores deputados. Intrigados, lá íamos comentando “Mas que raio, deu a vontade ao pessoal de irem todos ao mesmo tempo à casa de banho?”, “Será aperto de bexiga por meterem tanta água?”. Afinal eram apenas simples comezainas. Qual foi a solução para este esquema gastronómico nas sessões nocturnas? Isso mesmo, a sessão da assembleia passou a realizar-se na parte da tarde. Todos recordamos a anedota do presidente de um grande clube, ao marcar uma reunião de direcção para uma sexta-feira. A secretária perguntou:“Senhor presidente, sexta escreve-se com um ésse ou com um xis?" E o ilustre dirigente foi rápido na resposta: "Olha rapariga, é melhor marcar para sábado”.
Ainda nesse tempo das reuniões nocturnas, finda a avassaladora contenda ideológica, os deputados municipais das forças políticas do arco do poder dirigiam-se para um restaurante da zona, aí deglutindo à ceia a estimada senha de presença. Os deputados da CDU presume-se que não iam, por considerarem os repastos como desvios próprios de pequenos burgueses (pequenos consoante o tamanho do bife). O deputado do BE, esse não ia, por não lhe dar jeito comer sozinho.
Nessa época, em vez de “Vamos à assembleia” diziam “Vamos ao petisco”. Agora, em vez de “Vamos à assembleia” dirão “Então pá, logo vamos ao café”. Na hora dos mágicos lanches, quando o apetite também ataca o vizinho, comentam “Ó pá, agora ia um pastelinho”. Ou um beija-me depressa, ou uma fatia de Tomar, ou uma rodela de toucinho, mas daquele do céu, que o de porco faz engordar..
Por isso, de tasca a café, na Assembleia Municipal, houve ou não evolução, ó Zé? Pois houve sim senhor. Falta é o pão quente da Asseiceira, o tintol dos Casais ou os enchidos da Sabacheira. Por exemplo.

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