terça-feira, 29 de novembro de 2016

Cuba não é como a pintam

A brusca inundação de notícias, crónicas e comentários sobre Fidel Castro, o grande líder revolucionário, na sequência do seu falecimento, colocou-me um problema de consciência. Se, por um lado, o âmbito deste blogue é exclusivamente local, raramente nacional, por outro lado, tenho consciência de ser um privilegiado. Com efeito, salta aos olhos que a quase totalidade das peças sobre Cuba que já li, são obra de quem nunca lá foi. Ou de quem apenas esteve em Havana e Varadero que, conjuntamente com os Cayos, são paraísos para estrangeiros. Eu percorri toda a ilha.
Com efeito, tive ocasião de visitar Cuba durante 15 dias. Ainda antes de Raúl Castro. E não, não me deitei na praia, depois de besuntar o corpo  com mistura de óleo de coco e iodo, para bronzeamento rápido. Aterrei no aeroporto de Santiago, mesmo ao lado de Guantanamo, após um voo com origem em Paris. Isto porque, para grande surpresa minha, verifiquei que, no mercado turístico porttuguês, nenhuma agência de viagens tinha à venda circuitos turísticos em Cuba. O que me levou a recorrer ao mercado francês e a fazer depois Lisboa-Paris-Santiago, La Havana - Paris - Lisboa.
Partindo de Santiago, viajei por toda a ilha em autocarro, integrado num grupo de 14 franceses, naturalmente com um guia francófono. Com menos de 30 anos, puro produto da educação castrista, esse guia fez tudo quanto poude para "colocar" a irmã. Ele próprio o disse, quando a apresentou aos membros do grupo: "Sabe cozinhar, sabe costurar, sabe da lida da casa, aceita ser criada doméstica ou companheira de um homem, mesmo sem casamento. Quer é sair de Cuba!"

Havana - Um jovem cubano no centro da capital, à entrada de um dos Comités de Defesa da Revolução - CDR, os bufos de bairro, dos quais falo no texto. Para que conste. 
A foto, de João Pina, foi copiada de uma crónica do LE MONDE, cujo título diz o essencial: "Nós cubanos, queremos outra coisa - Liberdade!"

Estranho intróito a uma viagem turística, mas foi assim mesmo que ocorreu. Depois, nos diversos locais do percurso, acabei por compreender a atitude do guia, quando ouvia os naturais, sobretudo mulheres, murmurar junto aos turistas "tenemos hambre". E nem sequer pediam. Era apenas um lamento profundo, na própria linguagem ensinada nas escolas do regime, que o nosso PCP também vai procurando inculcar: o colectivo "temos fome", em vez do individual e pelo visto capitalista "tenho fome". E deviam realmente passar fome, pois mesmo no microcosmo privilegiado dos senhores do regime e dos turistas, os únicos com acesso ao Peso convertível, não se passou fome, mas notava-se que a fartura não era muita. Sei do que falo, porque tenho mundo. Já vi muito.
Na estância balnear de Guardalavaca, só para quadros do regime e para turistas estrangeiros, onde o consumo de bebidas e comida era livre para todos os portadores da pulseira amarela de identificação, era vê-los, aos cubanos bem vistos pelo regime e por isso premiados com curtas estadas, devorando com manifesto apetite o esparguete à bolonhesa e outras delícias., em pratos de tal forma cheios, que davam para dois com apetite normal.
Os admiradores de Castro e do seu regime gabam muito os sucessos da revolução na saúde, na educação e no desporto. Que são inegáveis, mas não chegam nem lá perto para justificar outras coisas. Infelizmente, quando se foca tal aspecto, regra geral a resposta vem rápida e implacável: -E se não fosse o bloqueio americano, podiam ter feito muito mais. Acredito piamente. Mas não posso deixar de perguntar: 1 - O regime de partido único também resulta do bloqueio? 2 - A polícia política também resulta do bloqueio? 3 - Os bufos de bairro e os bufos de rua, que são cargos oficiais, também resultam do bloqueio? 4 - As dezenas de milhares de "jineteras" (trabalhadoras da área do sexo) também resultam do bloqueio? 5 - A proibição para os cubanos de sair da ilha, também resulta do bloqueio? 6 - A evidente degradação geral das cidades, incluindo La Havana, também resulta do bloqueio, 7 - A censura prévia  também resulta do bloqueio? 8 - O pensamento único também resulta do bloqueio? Alguém imagina sequer em Portugal que as Forças Armadas possam gerir nomeadamente agências de viagens e empresas de transporte de passageiros? Pois em Cuba fiz o circuito com a Cubanacan, a agência de viagens das forças armadas cubanas. E esta hein? Diria o saudoso Fernando Peça, do alto da sua formação britânica, adquirida na BBC.
Significa tudo isto que Fidel, Ernesto, Camilo e tantos outros revolucionários da Sierra Maestra eram afinal simples monstros? É claro que não. Quanto a mim, foram apenas vítimas de uma síndrome bem conhecida, que dá pelo nome de "cegueira política". A mesma de que começa a padecer o camarada António Costa, quando aceita aumentar pensões, aumentar o salário mínimo, voltar às 35 horas na função pública, reverter a privatização da TAP, titularizar dezenas de milhares de funcionários com contratos a termo certo, tudo medidas estruturais, para agradar aos parceiros da coligação e pretextando que o PIB até cresceu mais do que o previsto, uma mera constatação conjuntural. E quando não houver crescimento económico, senhor primeiro-ministro? Como é que vai pagar tudo isso? Naturalmente agravando o saque fiscal. Como se enquanto contribuintes tivéssemos alguma culpa da sua evidente cegueira política. A mesma incapacidade para ver a realidade que atingiu tantos antecessores ilustres, entre os quais Fidel Castro. Ou Salazar, por exemplo.

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