quarta-feira, 23 de novembro de 2016

As várzeas urbanas

Na próxima sexta-feira há tertúlia sobre a Várzea grande e a Feira.  Fui convidado. Não podendo comparecer por estar demasiado longe, segue-se o meu contributo. O que lá iria dizer se...
Os participantes anunciados merecem-me todo o respeito e auguram um evento farto em competência e em temas para debate. Ainda assim, parece-me prudente lembrar que, na Europa do norte, a dos tais malandros que andam sempre a esforçar-se para nos imporem injustas medidas de austeridade, mas que têm sempre os orçamentos deles sem défice, é uso dizer-se que integramos o Club Med, ou clube do blábláblá. Por alguma coisa será (rima, e é verdade). Tendo isso em conta, nada melhor que recordar os chamados essenciais. Sem eles, nada se pode perceber bem.
A Várzea grande e a sua irmã pequena, ambas espaços públicos, são o que resta da várzea ou terreno alagado e pantanoso que foi a baixa tomarense até ao início do século XV. Apesar de nomeado administrador da Ordem de Cristo à sua revelia, em 1420, o infante D. Henrique, que era meio inglês, convém não esquecer, não se deitou à sombra da bananeira. Se calhar porque ainda não houvera descobrimentos e por conseguinte ninguém sabia ainda o que eram bananas. E muito menos bananeiras, para dormir à sua sombra.
Certo, mesmo certo é que o senhor infante mandou regularizar com açudes o curso do Nabão, nessa época designado rio grande de Tomar, enxugar as várzeas, construir os Estaus, edificar a saboaria e os moinhos. Depois, mas só depois, lançou então, com as rendas da Ordem, o que veio a chamar-se mais tarde a epopeia dos descobrimentos, cujas caravelas ostentando nas velas a cruz da ordem, que as pagava, partiram de Lagos, até que o infante se finou, em 1460.
Seguiram-se tempos áureos, mas bem complexos para Tomar e para a Ordem de Cristo, senhora da terra, que passaram pela entrega do seu mestrado à coroa, pela reforma desastrosa de 1529 e pela aclamação de Filipe II de Espanha como rei de Portugal, porque era o herdeiro legítimo, uma vez que filho de Isabel de Portugal e portanto neto de D. Manuel I.
Durante o chamado domínio filipino ou espanhol, houve um processo célebre, lembrado pelo padrão e documentado naquele painel de azulejos do Camarinha, que orna a sala de audiências do tribunal. Tratava-se de saber a quem pertencia afinal a várzea. Pertencia à Ordem dos frades, como sucessora da Ordem de freires, cavaleiros e comendadores, por sua vez herdeiros dos templários, os donatários de origem.


O juiz entendeu de outro modo. Sentenciou que pertencia ao povo. Permitiu assim a construção do agora em parte abandonado Convento de S. Francisco, a primeira grande amputação do usual largo da feira anual. Estávamos no século XVII.
Passaram os séculos, a administração do concelho foi cedendo terrenos, sobretudo no século XIX, de tal forma que, no primeiro quartel do século XX,  entregou à companhia dos caminhos de ferro quase metade da primitiva várzea pública, conforme ainda hoje se pode ver. Culminando a obra, em meados do mesmo século, a câmara resolveu que o Palácio da Justiça tinha de ser ali. E assim estamos.
A sul, aquilo que resta da outrora bem espaçosa Várzea grande, que já não é muito. A norte, a sua irmã dita pequena, com um modesto jardinzito e, à ilharga, uma ridícula hipótese de rotunda, que não prestigia ninguém e a todos envergonha. Na costumeira indiferença quase geral...
Sabe-se que não sou arquitecto, nem engenheiro, nem urbanista. Assim, o que vou dizer não passa de uma opinião bárbara, com um único mérito -é deliberadamente fora de órbita, no sentido em que não obedece a qualquer formatação prévia. Por isso vale o que vale = muito pouco. Mas mesmo assim aqui fica.
Várzea grande e Feira grande são para mim coisas distintas e por isso separáveis. A feira tal como já a conhecemos, nunca mais voltará a acontecer. Os tempos mudaram. Parece-me haver apenas três coisas entranhadamente tomarenses a preservar e melhorar. Duas estão quase esquecidas. A outra vai sobrevivendo, apesar dos sucessivos erros. Refiro-me à Feira da passas, à Feira dos queijos e à Feira dos ovinos e caprinos.
A primeira, a das passas, que levou uma séria facada de Torres Novas, precisa por isso de urgente reformulação, tendo em conta os novos tempos. No meu entender, deve passar a realizar-se na Praça da República, em conjunto com a dos queijos, como já foi em tempos. Já a feira dos ovinos e caprinos, quer-me parecer que  ficaria bem no largo do Pelourinho, por causa da facilidade de transporte dos animais.
Quanto à Várzea grande, não a estraguem mais. Mexam-lhe o menos possível, por enquanto. Limitem-se a melhorar-lhe o piso, de preferência acabando com a poeira provocada pelo rodar dos veículos. Isto porque, conforme é geralmente ignorado, Tomar não tem procurado atrair turismo. Exactamente ao contrário. Tomar tem sido, e vai ser cada vez mais, assediada pelos turistas, perante as ilusões dos senhores autarcas, que cuidam ter alguma coisa a ver com isso. Não têm. Salvo quando, por defeito, impedem que esse fluxo enriquecedor seja ainda maior. Ou quando, com medidas erradas, como por exemplo o trânsito de autocarros na Estrada do Convento só em sentido ascendente, impedem que muitos grupos visitem o centro histórico.
Nestas condições, um dia virá em que os eleitos concelhios, quer queiram, quer não, terão de mudar a espingarda de ombro. E esse dia está cada vez mais próximo, porque é inevitável e se está a tornar inadiável. Quando acontecer, um bem pensado e articulado plano global de desenvolvimento turístico terá forçosamente, para ir longe, de ter uma cabeça (o Convento de Cristo) e duas asas (asa norte Baixa da Anunciada, asa sul Várzea grande como já foi). Até lá deixem o velho largo da feira, onde inclusivé já funcionou, até ao princípio do século XX, a Roda dos Enjeitados, em paz. Não compliquem ainda mais o que já não é nada simples.
Conforme dizia por vezes o saudoso António Cartaxo da Fonseca, que muito me honrou com a sua sincera e desinteressada amizade, "quando há mais de dois tomarenses juntos a discutir, o melhor é pôr-se a cavanir" (ir-se embora). Espero sinceramente que desta feita não seja o caso.
Desejo boa sorte e muita inspiração realista a todos os intervenientes.

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