sábado, 23 de dezembro de 2023

Imagem copiada da página Facebook de Hugo Cristóvão, com os agradecimentos de TAD3.

Arqueologia local

Temos outra vez a burra nas couves

https://radiohertz.pt/tomar-obras-em-curso-no-flecheiro-revelaram-forno-romano/

Sendo a cultura geral dos tomarenses aquilo que é, convém começar por esclarecer que "ter a burra nas couves" é uma expressão popular que significa haver problema, desacordo ou sarilho. Cabe ao leitor escolher o que melhor lhe convier.
Nos anos 80 do século passado, apareceu em Tomar uma senhora arqueóloga, vinda de Coimbra, via ruínas de Conímbriga. Soube arranjar discípulos e subsídios, após o que dirigiu algumas escavações arqueológicas, designadamente na zona do quartel dos bombeiros. Encontrou alguns vestígios, o que não surpreende, porquanto no antigo olival do Manuel Capado estão referenciadas duas igrejas cristãs há muito desaparecidas: S. Pedro Fins e Santa Maria de Selho, que devem ter deixado alicerces.
Sem que se saiba bem como nem porquê, a citada arqueóloga determinou que se tratava das ruínas do fórum de Sellium, segundo ela a localidade romana antecessora de Tomar. Debalde se procura na literatura científica disponível qualquer fonte credível para confirmar a aludida descoberta arquelógica, para além da dita senhora, directamente  ou  via amigos e discípulos.
Anos mais tarde, já professora de arqueologia no Politécnico de Tomar, a mesma senhora identificou vestígios muçulmanos no castelo de Tomar, entre os quais um pavimento de tijolos em cutelo, nas ruínas dos Paços do Infante, que são do século XV, quando os maometanos foram expulsos do reino de Portugal dois séculos antes...
Nada disso obstou a que a câmara tenha gasto recentemente perto de um milhão de euros para "musealizar o Forum de Sellium", cuja segunda fase tarda em arrancar, pois trata-se de arranjar conteúdos e aí é que a porca torce o rabo. Onde arranjá-los e como integrá-los num pretenso museu de coisa nenhuma? (ver crónica anterior sobre o mesmo  tema)
Apareceu agora, inesperadamente, mais um achado arqueológico alegadamente romano, durante as obras do Flecheiro. Foi o cidadão Hugo Cristóvão, também presidente da Câmara, mas não nessa qualidade, que noticiou o facto na sua página do Facebook, logo reproduzida na do Gabinete de Curiosidades de Tomar. Ainda bem. O direito à informação está na Constituição da República, bem como a liberdade de expressão, embora haja eleitos com tendência para ignorar esses preceitos. 
Na referida página se escreve tratar-se de um forno de tijolo da época romana, sem que alguém explique como se chegou a tal conclusão tão depressa. O que não impede um comentário do arqueólogo Carlos Batata, discípulo da senhora arqueóloga antes referida, que a pedido da câmara elaborou um relatório no qual escreve não ter sido possível localizar as ruínas romanas da Nabãncia, em Cardais, classificadas como monumento nacional desde 1910.
Sustenta o senhor Batata, no seu comentário, que se trata de um forno romano de modelo raro, provavelmente destinado a cozer talhas. Como aquelas que agora se fazem ou faziam na Asseiceira, acrescentamos nós. Não tarda, estamos no vinho da talha, há pouco classificado como património imaterial. Com estas datações e especificações "a olho", tudo é possível.
De forma que vamos ter, segundo tudo indica, mais um achado "romano", para preservar numa espécie de gaiola, parecida com aquela junto ao pavilhão municipal, na rua do Centro Republicano. Para quê? Ninguém sabe. Num país em que há pessoas a saír do Convento de Cristo dizendo que "afinal é só pedras", devido à falta de visitas guiadas para todos os visitantes, que interesse prático podem ter os vestígios arqueológicos antes referidos, que nada têm de monumental, e muito menos de espetacular?
Temos assim, outra vez, a burra nas couves. Numa terra em que se deixa morrer à sede a antiga Cerca conventual, se permite o roubo da água dos Pegões, e não se pune a destruição intencional de parte  do aqueduto, tal como se destruiu o sistema tradicional de rega por gravidade do Mouchão, e se transformou em permanente um açude há séculos temporário; numa terra assim, gastam-se milhões em empreendimentos para preservar achados mal identificados e cuja serventia prática é nula. Só atrapalham. Por isso noutros países, bem mais ricos em património, em massa cinzenta e em turismo, quando aparecem são logo reenterrados, com uma cápsula metálica contendo documentos explicando o que aconteceu. Outras paragens, outros hábitos.
Estrangeirices e estrangeirados, dirão os tomaristas do costume. Sem dúvida. Mas não se esqueçam que o Gualdim Pais andou a combater na Palestina, o Infante D. Henrique era inglês pela parte da mãe e  Frei António de Lisboa, que afinal era de Tomar, professou em Espanha e só mais tarde voltou para a sua terra, onde fez as maldades bem conhecidas. E bem mais perto de nós, Jácome Ratton era francês, e o João dos Santos Simões, por alcunha o John, viveu em Inglaterra, onde se formou em engenharia têxtil, antes de vir para Tomar, onde reimplantou a Festa dos Tabuleiros que conhecemos. 
Resumindo, muitos dos que, mal ou bem, ajudaram a fazer a Tomar que hoje conhecemos, ou eram estrangeirados ou mesmo estrangeiros. Que alguns tenham sido ou sejam por vezes um bocado indigestos, a ponto de provocarem azias, isso já é outra música.

 

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