domingo, 15 de abril de 2018

Brasilês, português e tomarês

Dizem-me, aqui em casa, que hoje não é boa altura para escrever, por ser sexta-feira 13. Como nasci num dia 13 e no Hospital de Nª Sª da Graça, encostado à igreja do mesmo nome, na urbe nabantina, pode ser que me seja concedida a graça de escrever  mais um cronicazita sem percalços de maior.
Desde que resolvi começar a passar os invernos aqui em Fortaleza, tem sido uma alegria. Antes de mais porque a cidade vai a caminho dos três milhões de habitantes (um terço de toda a população portuguesa), apesar de existir há apenas 292 anos, que se comemoram hoje. Logo à noite vai haver espectáculo em grande, ali no Aterrinho da Praia de Iracema, a cem metros daqui de casa, com Caetano Veloso, entre outros. Tudo à borla, pois claro. Ou não fossem de descendência portuguesa. Mas tudo em grande, patrocinado por uma marca de cerveja. Além do palco monumental, há sanitários portáteis por todo o lado, posto médico avançado E polícia com força,  até em pequenas "torres de segurança",  que estamos no bairro dos ricos, onde moram as autoridades.




Temos também a língua dita comum, que afinal está a afastar-se cada vez mais. Por causa nomeadamente do vocabulário específico das vinte e tantas tribos de descendentes dos habitantes anteriores à chegada dos europeus, (a que chamamos índios, só porque Colombo julgou ter chegado à Índia, quando aportou a uma ilha deste continente). Além desse tal vocabulário dito caipira (do campo), que me abstenho de reproduzir por ignorância, há toda uma série de palavras em brasilês, que nada têm a ver com o português. Exemplos: Uma fita métrica é uma trena, um berbequim é um bisouro e uma poleia uma mãozinha francesa.
Tudo isto acompanhado da frase ocasional "fale mais devagar para mim perceber melhor". Há depois expressões mais rebuscadas e bem portuguesas, que aqui assumem outro significado. Todas as tardes, durante a caminhada no calçadão da beira-mar, me cruzo com um carrinho de venda ambulante, empurrado por uma moça, cuja marca é uma promessa. A moça vende sopas e bebidas quentes, pelo que se compreende a designação comercial inscrita no carrinho: "A quentinha da Ivone". O que me leva a recordar aquele restaurante popular, ali numa das esquinas da Rua Ildefonso Albano: o "Tempero da Marlene", "Aberto de Segunda Á Sábado". O próprio autor destas destas linhas é sucessivamente tratado como "doutor", quando dá um real ao "flanelinha" arrumador de carros, ou simplesmente Antônio (assim mesmo com ^ no primeiro o) RAbelo, porque têm dificuldade na pronúncia de vogais elididas. Preferem-nas abertas,  fechadas ou nasais.



Isto como prólogo, para agora poder escrever que Tomar, apesar de ter menos população residente que um bairro de Fortaleza, também tem dado o seu contributo para aquilo a que poderemos chamar tomarês.
A começar pelos tabuleiros. Quem nunca tenha visto a nossa festa grande, ou imagens da mesma, também não ficará a saber do que se trata. Porque apelidar de tabuleiro um cesto de vime com uma armação de canas, ornamentadas com flores e pães, e encimadas por uma coroa, é tomarês puro, temos de reconhecer. Normalmente deveria ser fogaça ou cesto ornamentado, porque tabuleiro não é de certeza, respeitando o dicionário: Tabuleiro: peça de madeira ou metal com as bordas levantadas; bandeja; superfície de madeira, marfim, plástico ou metal, para jogos de xadrês, damas, gamão, etc.; soalho do carro; parte do piano onde assenta o teclado; banco de areia que emerge na vazante; patim, patamar de escada; espaço plano em qualquer edifício ou terreno; talhe das marinhas; porção de terra para flores, hortaliças, etc; tabuleiro de pão, que serve para levar o pão ao forno; masseira.
Conforme se constata, significados não faltam, porém só o último tem a ver, e mesmo assim pouco, com o campo semântico em tomarês. Mas além de tabuleiro, temos outros vocábulos típicos da cidade e do concelho: uma selha é um copo de vinho grande, uma cadela é uma bebedeira e alguém meio ébrio está "com meia casa passada". Outra palavra muito usada em tomarês é penacho, em frases do tipo "gostam muito do penacho." Procurando evitar quiproquós, eis o rol de sinónimos possíveis: vaidade, presunção, soberba, gala, ostentação, jactância, poder, mando. Quer conferir? clique aqui.
Sobretudo depois do 25 de Abril, tem também sido muito usada no vale nabantino a expressão "respeitar a tradição", que em tomarês deve ser traduzida por: "as coisas não estão nada bem, mas se lhes mexermos ainda ficam piores, portanto o melhor é não mudar nada, não vá a gente cair do cavalo".
Fruto das circunstâncias e do empedernido, conquanto disfarçado, machismo local, temos agora uma nova variante em tomarês, assaz engraçada. Segundo a informação nacional e  local, os tomarenses acabam de eleger uma mulher como mordomo da festa. Em qualquer outra terra seria uma mordoma, como já se demonstrou nestas colunas. Mas estamos em Tomar, que diabo! Já demos novos mundos ao mundo (ou pelo menos estamos convencidos disso), e agora começamos a criar uma língua nova -o tomarês. Passaremos a ter mulheres médicos, mulheres arquitectos, mulheres mecânicos. E, com um pouco de sorte, até mulheres polícios, mulheres motoristos, mulheres enfermeiros, ou mulheres freiros.
Seguindo esse mesmo normativo tomarês, quando a soberana britânica Isabel II se finar, a informação tomarense terá de noticiar que lhe sucedeu o príncipe Carlos como rainha. Outro tanto deverá ocorrer caso Filipe VI, que reina em Espanha, venha a estar impedido de forma definitiva (oxalá que não!). Nessa circunstância, já estou a ver a primeira página da informação nabantina: Em Espanha,  filha mais velha de Felipe VI aclamada como rei.
Com tudo isto,  depois ainda se admiram quando os de fora começam a olhar para nós com cara de caso, logo que dizemos que somos de Tomar...
Siga a música, que o baile vai animado.

1 comentário:

  1. Bela crónica. Gostei.
    E. Queiroz escreveu que a crónica "conta mil coisas sem sistema, sem nexo", "sabe anedotas", "espreita porque não lhe fica mal espreitar", "tem uma doidice jovial, estouvamento delicioso", "é como os rapazes que não têm morada certa (...) que nos maçam, que nos fatigam mesmo e, quando se vão embora, nos deixam cheios de saudades"; etc.etc....... (de páginas de jornalismo)
    Gostei mesmo.

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