quinta-feira, 5 de abril de 2018

O homem que matou D. Quixote

Lembra-se do escândalo das filmagens, que provocaram estragos no Convento de Cristo? Então, caso queira ficar a compreender melhor o que se passou, faça favor de ler o que segue. Leva algum tempo, porém vale a pena, porque é jornalismo de alto gabarito, coisa cada vez mais rara nos tempos que correm.

"O homem que matou D. Quixote, o projecto louco de Terry Gilliam, continua amaldiçoado

É a Arlésienne da 7ª arte. O homem que matou D. Quixote, do realizador americano, está pronto para estrear nas salas. Mas continua bloqueado. (A Arlésienne é o título de um conto de Alphonse Daudet, que viveu entre 1840 e 1897, que se usa como figura de estilo, para mencionar uma personagem da qual se fala, mas que nunca aparece. Nota do tradutor.)

LE MONDE, 04/04/2018, 10H06, Gérard DAVET, jornalista, e Fabrice LHOMME, jornalista
Tradução e adaptação de António Rebelo, UPARISVIII

"É melhor confiar sempre  em Sancho Pança, fiel servidor do peculiar cavaleiro D. Quixote, os dois heróis da obra de Miguel de Cervantes. "Cada um é como Deus o fez, e muitas vezes bem pior", sentenciou a dada altura o criado, pragmático como poucos.
Por ter negligenciado tal ponto de vista, eis que duas grandes figuras da sétima arte continuam a afrontar-se. De um lado o mítico produtor Paulo Granco, 67 anos, com mais de 300 filmes de autor no seu activo. Do outro, o legendário realizador Terry Gilliam, 77 anos, criador inspirado de Brasil e de O exército dos doze macacos,  bem como genial inspirador dos Monty Python. O último episódio do duelo vai ter lugar quarta-feira, 4 de Abril, perante o Tribunal da Relação de Paris.
Aos pés destes dois gigantes do cinema mundial, uma só vítima: um filme O homem que matou D. Quixote, um projecto acarinhado por Terry Gilliam desde há 25 anos, mas várias vezes enterrado e ressuscitado. Até chegou  a dar origem a um documentário, Lost in La Mancha, (2002), mostrando uma primeira tentativa -calamitosa- de rodagem em 2000, com Jean Rochefort e Johnny Depp. Tudo se conjugou então contra Terry Gilliam, até mesmo a sua própria negligência: chuva diluviana, Rochefort doente, sobrevoo constante do local de rodagem por aviões militares... Sem contar os cavalos tão famélicos como Rossinante, o do "verdadeiro" D. Quixote...
E o azar continua: finalmente rodado e montado em 2017, pronto para a distribuição, O Homem que matou D. Quixote está agora bloqueado por causa do violento conflito entre Branco e Gilliam. O Festival de Cannes está pronto para mostrar o filme. Vai a justiça conceder-lhe essa oportunidade?

"Não sou nenhum santo"

E no entanto, tudo parecia resolvido, ou quase... Foi no Festival de Berlim, em Fevereiro de 2016: Paulo Branco, com ar de pirata cansado, que gosta de meter o nariz por todo o lado, entre duas corridas de cavalos -a sua outra paixão além do jogo- foi abordado por um produtor italiano: Porque não reassumir a produção do Homem que matou D. Quixote? Único óbice, há que disponibilizar 16 milhões de euros, o orçamento aquém do qual Terry Gilliam não aceita descer para para realizar o seu velho fantasma. Com Paulo Branco é tudo muito simples, pelo menos no início.  Já financiou tantos filmes, com habilidades e outros artifícios... "Não sou nenhum santo, reconhece. Há várias lendas sobre a  minha pessoa, que correm no mundo do cinema, e algumas são verdadeiras..." Mas dispõe de uma enorme rede de relações. Manuel de Oliveira, Raul Ruiz ou Chantal Akerman poderiam confirmar, se ainda estivessem vivos. Resumindo, vamos a isso. Um filme considerado impossível? Excitante. Arranjar 16 milhões de euros em seis meses? Nada de extraordinário.
O argumento está pronto e os planos de rodagem quase concluídos. Também, já passou tanto tempo... O filme deve estar concluído em onze semanas, em Portugal e em Espanha, no Outono de 2016. O Convento de Cristo, na cidade portuguesa de Tomar, foi reservado para a rodagem. Os actores principais são contratados: Adam Driver, cuja reputação está no topo de Holywood, e Michael Palin, um dos fundadores dos Monty Python. Driver vai receber 610 mil euros, Palin 285 mil e Gilliam 750 mil. A filha, Amy Gilliam, é contratada como directora de produção. Estão previstos cursos de equitação, em Londres e Nova Iorque, em regime de urgência, para Driver e Palin.
"Eu avançava de modo prudente, recorda Paulo Branco, porque na maior parte dos filmes de Gilliam os orçamentos explodiram. Mas compreendi logo que ele odiava os produtores. Comecei então a ter dúvidas, numa altura em que assegurava grande parte do financiamento. Na parte contrária, a mesma desconfiança. "Branco começou a reduzir despesas, sem prevenir Gilliam" garante o advogado Sarfaty, contratado pelo realizador britânico de origem americana, que acrescenta: "Tinham-nos avisado. Branco é autoritário, carismático, autocrata e pouco fiável. Já enterrou várias empresas... E não tinha o dinheiro."
É um facto que Branco já teve várias insolvências, que de resto admite abertamente. A produção de filmes é um desporto de alto risco. Mas conseguiu montar em 2012 uma outra longa-metragem de grande orçamento: Cosmopolis, de David Kronenberg, uma referência. O que dá garantias a Gilliam num primeiro tempo.
No entanto, tudo indica que, desde o início, a desconfiança era mútua. LE MONDE acedeu aos mails trocados entre os agora duelistas e garante que são muito elucidativos.

Terry Gilliam, uma promessa de loucura




Primeiro foi Michael Palin a queixar-se ao seu amigo Gilliam: Afinal Paulo Branco oferecia-lhe apenas 100 mil euros. O realizador inglês escreve logo, em 24 de Março de 2016, ao seu produtor: "A oferta dos 100 mil euros a Palin foi recebida como uma bofetada,  e foi ainda mais desagradável para mim tentar acalmá-lo. Não te conheço ainda o suficiente para confiar em ti ou não confiar."
O relacionamento torna-se mais tenso. E o orçamento? Paulo Branco vai fazendo o possível. Solicita todos os seus amigos. Jack Lang, antigo ministro francês da cultura, tenta convencer Delphine Ernotte, a patroa de France Télévisions, Gilles Pélisson, o responsável máximo de TF1, ou Vincent Bolloré, de Canal+, a ajudar o amigo português.
Paulo Branco tenta afirmar a sua posição, num mail a Gilliam: "Este projecto, para que se torne uma realidade, deve ter um verdadeiro e único produtor, um capitão. (...) Tudo numa perfeita transparência e permanente discussão orçamental." O "capitão" é naturalmente Paulo Branco Gilliam, cheio de vontade de fazer o filme, resolve ignorar os conselhos dos seus amigos. Escreve-lhes a 26 de Março de 2016, nestes termos: "Obrigado a todos pelos vossos conselhos, advertências e ameaças, mas a única maneira de fazer o filme este ano é lançar-se na loucura...com o Paulo." Nunca terá imaginado ter tanta razão naquilo que escreveu.
Em 29 de Abril de 2016, Gilliam cede os seus direitos de autor-realizador a Alfama, a sociedade de Paulo Branco, mediante um contrato sólido, no qual o produtor se compromete a  respeitar a transparência e os desejos do criador. Antes, em 31 de Março de 2016, Alfama tinha também adquirido os direitos do argumento, junto do produtor britânico RPC. Tudo parece portanto correcto em termos jurídicos.

Multiplicam-se os conflitos

Em 18 de Maio de 2016, no Festival de Cannes, acontece a revolta. Gilliam e Branco anunciam o projecto à imprensa. Apesar de Gilliam não ter feito nada de notável desde há tempo, o nome é uma promessa de loucura. Uma obra-prima é sempre possível, mesmo aos 77 anos. Sobretudo com Paulo Branco, o instigador de milagres. Mas nos bastidores, as coisas vão de mal a pior...
Paulo Branco mostra uma impetuosidade que incomoda. Amazon, que vai investir 2,5 milhões no filme, começa a desconfiar do português e decide retirar-se. Precisamente no dia 17 de Maio de 2016, na véspera da conferência de imprensa, conforme comprova este mail de Matthew Heintz, um dos dirigentes de topo de Amazon, furioso por ter constatado que a sua empresa já era citada, quando ainda não havia qualquer contrato assinado: "Nunca demos o nosso acordo para que fosse tornado público o nosso compromisso... Ainda que admiremos as opções de Paulo Branco e o seu palmarés, tendo presentes os contactos já tidos com ele, não desejamos prosseguir as negociações."
Desagradável. Tanto mais que Paulo Branco rompeu também as negociações com outros investidores pressentidos. A sociedade Kinology, por exemplo. Num mail lapidar, esta empresa afirma "Não faremos o filme juntos". E os conflitos vão-se multiplicando. Caso a caso, Paulo Branco decide, de forma autoritária: a cabeleireira é demasiado cara, o assistente-realizador também, tenta impôr a sua irmã como encarregada de guarda-roupa, discute com Amy Gilliam, recusa Michael Palin, demasiado velho e que não sabe montar a cavalo. Quer também filmar em formato digital, para facilitar os efeitos especiais, mas Gilliam prefere o clássico formato 35 milímetros. E depois há ainda as datas que já não convêm: chove em Outubro, é mlhor aguardar pela Primavera de 2017, e por aí fora.

Um odor de "Panamá papers"

O filme tem de entrar em pré-produção, mas não há condições. "Vai sendo tempo de pôr as cartas na mesa (...) Tenho infelizmente a impressão que é tudo uma questão de dinheiro, ataca Gilliam. "Não aceito esse tipo de comportamento de menino mimado", responde Paulo Branco.
Em 10 de Junho de 2016, organiza-se uma reunião para tentar salvar o filme. Sem resultado. Gilliam pede garantias financeiras. "Vou ter de anular tudo imediatamente e mandar-vos todos para casa", barafusta Paulo Branco. Em 6 de Agosto cumpre a ameaça. Por mail, ordena a Gilliam que aceite as suas condições. Em resumo, Paulo Branco deverá ser o único patrão, incluindo na escolha das equipas técnicas.
Inaceitável para Gilliam. "Todas as tuas exigências são totalmente incompatíveis com o contrato escrito que assinei", responde a Branco, lamentando também o seu "comportamento desleal e enganador". Amy Gilliam, por seu lado, fala menciona num mail o "comportamento de um tirano e de um intimidador". Reacção imediata do produtor: suspensão imediata e ilimitada da realização do filme, mas prolongando os direitos sobre o argumento. É de novo a maldição de D. Quixote.
Protegido pelos seus contratos, sólidos como betão armado, Paulo Branco aguarda a contra-ofensiva. Que não tarda. São apresentadas queixas judiciais em Espanha, na Grande Bretanha e em França, tendo em vista que Gilliam recupere os direitos de autor, de realizador e de argumentista. Sem eles é difícil relançar o projecto. Mas os dois primeiros julgamentos, em 2017, em Paris (Maio) e Londres (Dezembro), dão razão a Paulo Branco.
Apesar disso, Gilliam insiste e resolve fazer o filme. Consegue um outro produtor, reúne os 16 milhões de euros e inicia a rodagem na primavera de 2017, com Jonathan Price que substitui Palin. "Seguiu todas as minhas recomendações, todos os meus conselhos", indigna-se Paulo Branco, que se considera esbulhado. "Por isso fui ver o seu contrato, depositado no CNC." Foi aí que descobriu algo bem curioso: "Gilliam solicitou o pagamento de 750 mil euros no Panamá! É isto um ídolo da esquerda britânica, o meu acusador? Eu nunca teria aceitado depositar o dinheiro no Panamá! E como é que nestas condições beneficiou de fundos públicos, nomeadamente de Eurimages?"
Realmente, Terry Gilliam é detentor, desde 1980, de uma sociedade, a BFI, com sede no Panamá, por intermédio do gabinete Mossack Fonseca, no âmago do escândalo dos "Panamá papers"... "Assumo e é perfeitamente legal em relação aos fisco britânico", assegura o advogado de Gilliam
"Branco bloqueia o filme e impede a sua estreia porque é um perverso que orquestrou um assalto organizado."

Gilliam é louco

Várias mediações foram já propostas tanto por Paulo Branco como pela sua advogada, Claire Hocquet, que exigem 3,5 milhões de euros de indemnização, para autorizar a exploração comercial do filme. "Se resolveram avançar mesmo sem acordo, usaremos todos os recursos do direito", previne a advogada. "Não vou ceder, insiste Paulo Branco. Agiram como se eu estivesse acabado, ultrapassado. Gilliam é um louco e um mitómano."
"Paulo Branco faz tudo para dinamitar a estreia do filme", replica Sarfati, o advogado de Gilliam. "O  sentido da sua chantagem é este: Ou me pagam 3,5 milhões de euros, ou destruo o filme e destruo Gilliam."
Cabe agora aos magistrados do Tribunal da Relação de Paris decidir, meditando talvez este aforismo de Cervantes: "Aves com as mesmas plumagens, voam sempre nos mesmos bandos."

Nota final do tradutor

Conforme neste blogue se escreveu na altura, o incidente das filmagens no Convento de Cristo, que alarmou a opinião pública nacional, na sequência de um programa na RTP1, foi afinal apenas mais um pequeno episódio orquestrado por Paulo Branco, na sua longa guerra contra Terry Gilliam.

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