sábado, 16 de outubro de 2021

 


História - Templários - Economia

TEMPLÁRIOS:
Pobres, modestos, independentes e iguais

Alguém já escreveu que somos um povo de dez milhões, separados pela mesma língua. É uma boutade. Mas retrata fielmente muitos mal-entendidos, sobretudo desde que temos liberdade de opinião.
A propósito do que aqui disse sobre a Rota templária europeia, parece haver quem pense que se tratou de um ataque àquela estrutura. Estão enganados. Não se trata de ser contra ou a favor. Não tenho que tomar posição, que de resto ninguém me solicitou. O meu ponto é outro.
Ao unirem-se numa irmandade a que deram o nome de "Pobres cavaleiros de Cristo", os fundadores dos templários tinham todos uma ideia, um projecto, um programa para o futuro imediato e a prazo. Pretendiam defender os lugares santos e proteger os peregrinos cristãos, nas suas complicadas e demoradas jornadas entre a Europa, a costa mediterrânica e Jerusalém.
Só num segundo tempo, quando o rei cristão da cidade santa, Balduíno III, lhes atribuiu para sede as ruinas do velho templo de Salomão, do qual resta apenas o actual "Muro das lamentações", (local sagrado para os judeus), passaram a ser conhecidos como "milícia do templo", "templeiros" ou "templários". Mas mantiveram os seus votos iniciais (fé, pobreza, obediência ao mestre eleito e castidade), bem como aquilo a que hoje chamamos "programa"- a defesa dos lugares santos cristãos e a protecção dos peregrinos.
Assim surgiu a primeira agência de viagens com circuitos acompanhados militarmente, actividade que veio a permitir a médio-longo prazo a acumulação da enorme riqueza templária, alvo da cobiça de vários soberanos europeus. O modus operandi era bastante simples.
Ao empreender a peregrinação à Palestina, que na altura era uma obrigação para todos os crentes com posses, cada  cristão deixava os seus bens e a sua família à guarda dos cavaleiros templários, que lhe passavam uma "carta de quitação". Durante toda a viagem, particularmente durante as etapas por terra, quando o peregrino tinha alguma dificuldade com meios de pagamento, bastava-lhe mostrar aos cavaleiros do templo que o escoltavam a dita carta de quitação e imediatamente conseguia crédito, a reembolsar mais tarde, com juros. Assim surgiram os primeiros cheques de viagem e o primeiro grande banco detido por uma ordem de cavalaria, graças a oportuna dispensa do Papa.
O resto é bem conhecido. Instalados em Portugal, sempre os templários viveram das suas terras, que defendiam militarmente e onde administravam a justiça, cobrando também os impostos da época,  quase sempre "em géneros" (entrega anual de cereais, azeitona, aves e animais, em vez de dinheiro, bastante raro na época). Por conseguinte, mantinham sempre a mais estrita independência em relação ao soberano, que reconheciam como suserano, mas do qual não dependiam materialmente.
Nos nossos dias, a extraordinária reputação dos templários provém de dois focos. O principal foi o longo e criminoso processo intentado pelo rei de França, Filipe o Belo, com a ajuda do Papa Clemente V, que culminou com a execução pública de muitos cavaleiros e a extinção da ordem.
O outro foco ocorreu em Portugal, em duas fases bem distintas. Na primeira, o rei D. Dinis recusou obedecer à ordem papal para dissolver os templários e entregar os seus bens móveis à Santa Sé. Limitou-se a mudar-lhes o nome para Ordem de Cristo e a deslocar a sede para Castro Marim, mais próxima dos infiéis.
Um século mais tarde, o estrangeirado Infante D. Henrique, filho de D. João I e da inglesa D. Filipa de Lencastre,  é nomeado pelo Papa governador da Ordem de Cristo, a pedido de seu pai. Estava-se então em 1420, e apesar de várias tentativas nesse sentido, nunca o senhor infante conseguiu ser eleito mestre da ordem, o que mostra bem a independência da mesma em relação ao poder real.
Sucessivamente administrador, governador e zelador da Ordem de Cristo, afinal os templários com outro nome oficial, D. Henrique usou os muitos recursos da ordem para financiar inicialmente a empresa dos descobrimentos. É o seu cronista Zurara quem o diz, escrevendo que o senhor infante pagou as suas empresas marítimas "com os seus cabedais e os da Ordem de Cristo".
Donde resulta que, pelo menos até ao falecimento de D. Manuel I, em 1521, os descobrimentos nunca foram uma iniciativa do poder real, mas sim uma empresa privada custeada e liderada pela Ordem de Cristo. Só no reinado de D. João III se consuma o desastre.  A partir de 1529, a ordem de Cristo é desmantelada, sob a designação genérica de "reforma", e a coroa passa a dirigir toda a empresa dos descobrimentos, com os resultados que hoje são conhecidos.
Perante estes factos históricos, que são indubitáveis, resulta pelo menos estranho observar que, em pleno século XXI,  uma determinada entidade, tendo por fim a defesa, a promoção, a peregrinação e a fruição do património templário a nível europeu, seja totalmente dependente do poder político local, assim atraiçoando o ideal de independência material dos cavaleiros, cuja memória pretendem exaltar a justo título. É uma evidente contradição factual. Louvar a obra, atraiçoando o espírito que a tornou possível.
Foi isto que se pretendeu denunciar no escrito anterior. Como parece que não entenderam, aqui fica a explicação mais detalhada. Aguardo os eventuais debates serenos que entenderem.

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