Tencionava manter o silêncio. Um mutismo de reflexão, de muito respeito, de profunda saudade e de imensa tristeza perante a partida deste mundo daquele que tanto me ensinou em política -o cidadão Mário Soares, pois era assim que se considerava. Um simples cidadão, acérrimo defensor dos direitos de cidadania para si e para todos os outros.
Ao publicar, no seu blogue Tomar na rede, a fotografia infra, José Gaio força-me a quebrar esse desejado silêncio, que tinha como objectivo único poder verter lágrimas mais recatadamente. Mas pronto. Está feito, está feito. Nada tenho a recriminar.
Foto António Cotrim - Lusa. Copiada de Tomar na rede.
Tive a sorte e a honra de conhecer e conversar com Mário Soares em Paris, no início dos anos 70 do século passado, aquando do seu exilio, forçado pelo regime de então. Fui seu aluno na UV Instituições políticas portuguesas, 1832 -1910, na Universidade de Paris VIII - Vincennes. Conversamos depois várias vezes, tanto na biblioteca do Departamento de Estudos Ibéricos, onde eu era monitor, como na Livraria François Maspero, no Bairro Latino. Tempos duros, muito duros mesmo. Em que era difícil e perigoso ser oposicionista.
A dada altura, no início de uma das aulas de Mário Soares, um nutrido grupo de oposicionistas portugueses, que incluía Palma Inácio, preparava-se para agredir o então "encarregado de curso", alegando que Soares era afinal um lacaio dos americanos, pago pela CIA. Já então a depois extrema-esquerda portuguesa tinha destas coisas. Acusava, julgava, condenava e executava a sentença sempre que podia. Sem jamais ouvir a outra parte.
Dessa vez, estando eu a tomar conta da biblioteca, estranhei o barulho vindo da sala E113, que ficava do lado oposto do corredor, e fui ver o que se passava. Perante a algazarra reinante, tentei acalmar a "troca de galhardetes" com uma proposta simples. "Uma vez que vocês acusam o Prof. aqui presente de ser um lacaio dos americanos, acusação que ele nega categoricamente, proponho que nos encontremos todos aqui amanhã à mesma hora e cada parte apresentará então as provas daquilo que afirma." Para grande surpresa minha, os contestatários abandonaram a sala e quando eu já regressava à biblioteca do departamento, Mário Soares foi simples e directo: "Tenho que lhe agradecer; você livrou-me de um aperto sério".
Posteriormente, já em Portugal, nunca apresentei a respectiva factura ao sucessivamente líder do PS, ministro, Primeiro-ministro e Presidente da República, porque isso não integrava nem integra os meus hábitos de cidadania, mesmo no âmbito político. Cheguei até a apoiar dentro do PS alguns adversários de Mário Soares. Mas nem isso obstou a que, grande senhor e grande cidadão, ele nunca tenha esquecido o nosso relacionamento parisiense. Por isso, quando numa visita a Tomar, em 1991, me reconheceu entre o numeroso público que o aguardava, veio imediatamente na minha direcção e cumprimentou-me com entusiasmo, conforme documenta a foto supra. Outros teriam quiçá aproveitado para o abraçar, para depois daí tentarem sacar benesses. Não era e continua a não ser o meu estilo.
Dito o inevitável, resta-me um singelo aceno de despedida, com os olhos marejados de lágrimas pela irreparável perda de um cidadão ímpar, que foi também meu mestre.
Que descanse em paz porque bem mereceu.
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