terça-feira, 28 de março de 2017

Futuramente, cidades sem carros?

As leis contra o automóvel generalizam-se nos centros urbanos europeus, apesar das várias resistências. E aparecem novas formas de mobilidade, por vezes lançadas até pelos próprios construtores de automóveis.




Foto extraída da primeira cena do filme "LaLaLand", rodada em Los Angeles, Estados Unidos, em 2016. De acordo com Graham Cookson, economista chefe do Instituto Inrix, especializado no estudo dos transportes, nos Estados Unidos os engarrafamentos de trânsito custam à primeira economia do Mundo 280 mil milhões de dólares, ou seja mais de 1,8% do PIB. Dale Robinette

Câmara Municipal de Paris. No seu gabinete em tons claros e cheio de papéis, Christophe Najdovski, vereador ecologista, adjunto da presidente da edilidade da capital, Anne Hidalgo, levanta-se de repente e abre a janela que dá para a engarrafada Rua de Rivoli. "-Está a ver, diz-nos o eleito responsável pela área dos transportes e circulação urbana, apontando para o engarrafamento vários andares mais abaixo. Se tirássemos as carroçarias aos carros, deixando só as pessoas, veríamos que há menos gente nas faixas de rodagem que nos passeios. Há que colocar o automóvel no lugar que lhe cabe", é assim que o autarca define a política já implementada e a levar a cabo em Paris, que naturalmente tem suscitado resistências e protestos, desde o encerramento de parte da via ribeirinha da margem direita, no verão de 2016.
E todavia, Paris não é a única grande cidade a lançar-se numa redução do trânsito automóvel no centro. Na Europa, das cidades médias às grande metrópoles, cada vez mais urbes implementam leis anti-automóveis: proibição de circular nos centros históricos, portagens urbanas, zonas reservadas aos veículos eléctricos... Eis alguns exemplos, escolhidos entre centenas deles: Oslo, capital da Noruega, vai proibir o acesso automóvel ao centro, em 2019; Pontevedra, na Galiza-Espanha, praticamente baniu os carros do centro histórico; Estugarda, Alemanha, já anunciou que vai proibir os carros diesel no próximo ano, e Paris fará o mesmo, mas em 2020. Como se vê, a tendência é forte e mundial.
"Se recuarmos um pouco em termos históricos, constatamos que o automóvel se implantou a partir dos anos 30 do século passado nos centros urbanos com população mais rica, tendo depois evoluído para os bairros populares e finalmente para a periferia", explica Frédéric Héran, economista e urbanista, professor na Universidade de Lille-I. "Continua aliás a estender-se para a grande periferia, na mesma altura em que começa a recuar no centro urbano. São fenómenos de fluxo e refluxo em prazos longos, com afastamentos em função de cada país."
Circulam actualmente no Mundo entre 1,5 e 2 mil milhões de viaturas particulares. É portanto difícil negar que tal abundância provoca problemas variados nas cidades, particularmente nas metrópoles. Temos naturalmente a questão da poluição do ar, causa de uma mortalidade menos visível  que a ligada aos acidentes de trânsito, mas na realidade cinco a dez vezes superior. O custo económico induzido pelos efeitos na saúde humana da poluição automóvel, pode exceder 800 mil milhões de euros à escala mundial.
Mas não é só isso. Os próprios congestionamentos de trânsito também têm um custo. Segundo Graham Cookson, economista chefe no Instituto Inrix, especializado no estudo dos transportes, os congestionamentos de trânsito nos Estados Unidos custam à primeira economia mundial 280 mil milhões de euros, o que representa mais de 1,8% do PIB que se esfuma. "Calculamos este montante, atribuindo um preço ao tempo perdido nos engarrafamentos e calculando o excesso de consumo de combustível que daí resulta", conclui Graham Cookson.
E depois temos também a simples racionalidade. Segundo um estudo dos Décodeurs du Monde, os modos motorizados representam 13% das deslocações em Paris, mas ocupam 50% da vias. "Não será preferível transportar pessoas, em vez de veículos?", pergunta o vereador Najdovski.

Uma mudança que incomoda
Apesar de tudo o que antecede, são numerosas as resistências à evolução. Há antes de mais os que, com frequência, se consideram vítimas da redução da circulação automóvel -os comerciantes. Em Grenoble, França, o projecto "Corações urbanos, corações de metrópole", uma ideia do presidente da câmara ecologista Eric Piolle, vai entrar na fase decisiva em meados de Abril próximo. Esse projecto prevê a pedonalização de vários sectores e a transformação de um eixo de grande circulação em via mais tranquila, com uma "auto estrada para bicicletas".
"A favor de uma moratória". O cartaz branco e vermelho está exposto em várias montras do centro da cidade. Em letra mais pequena, o peão mais curioso pode ler um requisitório contra a extensão da zona pedonal. A tensão sobe à medida que se aproxima o início das obras previstas. A Câmara é acusada pelos seus adversários políticos de "asfixiar a cidade". Desde há mais de um ano, as associações de comerciantes, a câmara de comércio e indústria e o presidente de centro direita da Região Auvergne-Rhône-Alpes, Laurente Wauquiez, crêem que a redução da circulação motorizada vai provocar uma perda de actividade económica para a capital do Dauphiné. 
Há também contestação em Bruxelas, Bélgica. Em Junho de 2015, uma avenida central, a Anspach, foi encerrada ao trânsito automóvel, duplicando assim o sector pedonal da cidade. As prestigiadas fachadas do século XIX e as colunas do Palácio da Bolsa aparecem gora aos peões com todo o seu esplendor, enquanto que o burgomestre socialista, Yvan Mayeur, enaltece a redução dos incómodos ligados ao barulho e à poluição.
Mas mesmo assim, o debate azeda-se nos média e nas redes sociais. Algumas associações de comerciantes e opositores políticos denunciam a "inacessibilidade do centro histórico" e acusam o burgomestre de ainda não ter mandado arranjar os espaços pedonais. Nos painéis que indicam a proibição de acesso de viaturas, alguém escreveu com raiva "Parem com as zonas pedonais".

A indústria automóvel mostra-se insatisfeita
Os comerciantes não são os únicos a achar que basta de zonas pedonais. A indústria automóvel, forçosamente prejudicada por estas mutações profundas, também se mostra insatisfeita. Durante o Salão automóvel de Genebra (Suiça), que fechou as suas portas em 19 de Março, não se hesitou em falar de autofobia, mesmo ao mais alto nível. "Essas políticas são más, avança Harald Krüger, o patrão da BMW. São amiúde injustas para pessoas como os pequenos empresários urbanos, que têm necessidade vital de um veículo e não podem recorrer aos eléctricos." O seu colega da Audi, Rupert Stadler, é ainda mais mordaz: "Talvez fosse boa ideia começar a perguntar aos cidadãos o que pensam realmente sobre esse assunto."
"Dado haver uma demagogia automóvel, existe também um populismo ecológico de casco histórico", deplora Mathieu Flonneau, historiador do automóvel e professor na Universidade de Paris-I. As políticas anti-viaturas são vivamente denunciadas como sendo anti-sociais e não tendo em conta as necessidades das populações dos arrabaldes mais afastados. "Metade dos desempregados em reinserção profissional recusam propostas de emprego por causa da mobilidade", lembra Cécile Maisonneuve, presidente da La Fabrique de la cité, um grupo de estudos criado por Vinci [multinacional francesa que gere, entre outros, o aeroporto de Lisboa], que se dedica ao estudo das cidades do futuro.
Do lado dos ecologistas relativizam-se todas estas críticas. "Nunca dissemos que é preciso acabar com os automóveis", disse-nos um deles, que logo acrescentou "Seria aliás impossível: mais de um quarto da circulação motorizada provém de entregas, taxis, serviços de urgência." Seja como for, está confirmado que, nas cidades que procedem a alterações tendentes a limitar o espaço do automóvel, com o tempo o debate sobre o tema torna-se mais calmo.
A pedonalização do centro de Estrasburgo (França) ou das vias ribeirinhas da margem esquerda, em Paris, as "zonas de circulação limitada" nas cidades italianas ou em Nantes (França), o limite de velocidade a 30 quilómetros por hora em Viena  (Áustria) ou Hamburgo (Alemanha), já não alimentam polémicas. E em todas estas cidades o comércio não morreu, nem definhou. Antes pelo contrário.

Mobilidades, transportes partilhados...
Estaremos quase a assistir a uma evaporação lenta e sem dor do trânsito automóvel nas cidades? Não é bem assim. Porque entretanto a indústria automóvel reergueu-se. Moribunda há 15 anos atrás, está agora em plena forma, ajudada pelas vendas dos SUV, esses 4X4 urbanos que parecem ir em sentido contrário ao da história. E efectuou também a sua revolução tecnológica. Cada vez mais eléctrica, autómoma e conectada, está pronta a adaptar-se ao novo contexto.
Olhe a Ford, por exemplo, um dos grandes construtores mundiais. Aquando do Salão automóvel de Detroit, em Janeiro passado, o seu presidente Mark Fields não apresentou nenhum novo SUV ou qualquer protótipo de carro eléctrico, ao contrário do que fazem habitualmente os seus homólogos. Tendo como apoio um filme publicitário de mini-autocarros e bicicletas com a assinatura da Ford, Mark Fields falou de novas mobilidades, de transportes partilhados e de cidades sem engarrafamentos.
Nesta grande transformação societal, três grandes indústrias são chamadas a cooperar: a dos fabricantes de veículos, a dos produtores de sistemas e de programas informáticos, e a dos operadores de transportes públicos.   Um automóvel acessível colectivamente, já não propriedade individual, mas utilizado ocasionalmente. Nada de novo afinal. O serviço parisiense de viaturas eléctricas Autolib (grupo Bolloré) acaba de festejar os seus 5 anos de existência e já foi usado por mais de 320 mil pessoas, fazendo actualmente parte do passe parisiense de transportes Navigo.
Apesar das interrogações sobre a viabilidade financeira da partilha automóvel (Autolib não é rentável e provavelmente nunca o será), há cada vez mais interessados neste sector. Vêm em geral da área do aluguer sem condutor, como o americano Zipcar, ou o francês Europcar. Estas duas empresas estão associadas num serviço de auto-partilha desenvolvido pela Câmara de Paris, chamado SVP (serviço de viaturas partilhadas), o qual vai dispôr em breve de mais lugares de paragem e estacionamento nas ruas parisienses.
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Novos mercados
"O automóvel ainda continua a representar o futuro dos transportes colectivos", resume François Roudier, director de comunicação do Comité dos construtores franceses de automóveis. Um verdadeiro desafio para os operadores tradicionais do transporte urbano (metro, autocarro, taxi, comboio), que não ficam de braços cruzados.
Já conhecemos os mini-autocarros eléctricos sem condutor, como os que experimenta em Paris a RATP [empresa do metro parisiense]. Keolis, filial da SNCF [caminhos de ferro franceses] está a testar um novo programa de mini-autocarros partilhados a pedido (5 euros cada viagem), no oeste parisiense. Em Amsterdão (Holanda), Connexxion, uma filial do francês Transdev [que também opera em Portugal], lançou com êxito um sistema de táxis eléctricos, nos quais quanto mais são os passageiros, menos paga cada um.
Todos estes investidores estão em busca de novos mercados, induzidos pela luta contra a expansão automóvel nas áreas urbanas. A Câmara de Paris, apesar de liderada por uma eleita socialista, está a entregar a privados a actividade municipal de fiscalização do estacionamento pago. Effia, a empresa gestora dos parques de estacionamento urbanos da Kéolis, está interessada nesse concurso.
Ao lado deste combate de titãs, uma pequena e discreta indústria vai progredindo: a fabricação e comercialização de bicicletas com assistência eléctrica. "O meio de transporte testado como o mais rápido na área urbana de Paris", segundo Cécile Maisonneuve. O volume é ainda modesto. Venderam-se em 2016 cerca de 130 mil bicicletas eléctricas em França. Mas o crescimento do sector, 25 a 30% nos últimos 5 anos, faz inveja a todos os operadores de transporte."

Eric Béziat e Olivier Rézemon, Le Monde Économie, 26/03/2017
Tradução e adaptação de António Rebelo


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