Numa altura em que se fala no próximo (???) realojamento de 25 pessoas do acampamento precário do Flecheiro, o que corresponde a 12,5% dos seus actuais 200 habitantes, talvez seja útil saber algo sobre um outro acampamento precário, em Calais - França, mas neste caso com mais de 9 mil habitantes. 45 vezes o Flecheiro! Para relativizar as coisas.
Dada a complexidade do assunto, foram traduzidos dois textos do jornal de Le Monde. É uma leitura algo árida e por isso nem sempre fácil, mas que compensa quem gosta de saber um pouco mais, para nunca falar à toa.
"Em Calais, aguardando o desmantelamento"
"À medida que se aproxima a data da evacuação, as associações de apoio aos migrantes mostram-se preocupadas com o que os espera"
"O relógio da torre não parou e a cerveja continua a correr aos balcões dos cafés de Calais. Na "selva", as noites dos migrantes continuam a ser marcadas pelas tentativas de passagem para a Grande Bretanha, e os fins de tarde pelas refeições distribuídas no centro de apoio social Jules-Ferry. A notícia da próxima evacuação da "selva" de Calais, dada no passado dia 2 de Setembro pelo ministro da administração interna, não fez parar o tempo nesta cidade-fronteira.
No bairro da lata, onde prevalece a sobrevivência diária, onde muitos dos 9 mil migrantes (7.900 segundo o governo civil) mantêm a esperança de conseguir chegar à Grande Bretanha nas próximas horas, o anúncio do ministro francês não alegrou nem assustou. "Já conheci a guerra, as bombas, os ataques-surpresa e agora vão deitar abaixo a minha barraca? Tenho tendência para pensar que vou conseguir sobreviver mesmo assim", diz em tom irónico Ahmad, sentado no Restaurante Hamid Karzai, um dos estabelecimentos da "selva" onde os mais abonados podem comer ao meio dia e os outros vêm só para conversar. Na casa ao lado, uma ex-loja de moda transformada em alojamento para responder à sobrepopulação do acampamento, dois outros afegãos, trinta e poucos anos, passam o tempo vendo videos, deitados num cobertor.
Linha de fractura
Walhadad, que já pediu asilo em França, está contente "porque vão finalmente desmantelar um acampamento onde vivemos como animais. Com a vantagem que desta vez vão ser obrigados a alojar-me", refere com um sorriso quem, de acordo com a lei, já devia ter sido alojado. Já o seu amigo Ahmid, que ainda não desistiu de passar para a Grande Bretanha, está inquieto. "É bom para ti, Walhadad; mas eu tenho de ficar próximo da fronteira", insiste ele, que já viveu sete anos em Liverpool, antes de ser expulso para o Afeganistão e de voltar a calcorrear o caminho rumo à Europa. Para onde irá depois de Calais? Não sabe. Entre os sudaneses, maoritários no acampamento, a linha de fractura passa entre os que espreitam para o outro lado do canal da Mancha, e os que acabaram por optar por um pedido de asilo em França.
No seio deste grupo, 80% já foram identificados e pediram asilo noutros países europeus por onde passaram. É deles que depende o êxito ou o malogro da evacuação do acampamento. Sucede que o relatório de 2 de Setembro do Ministério da administração interna especifica que "as pessoas cujo pedido de asilo depende de outro Estado [é o caso] serão colocadas em residência vigiada até à posterior transferência para o país competente para tratar o seu pedido de asilo."
Desde que os Centros de Acolhimento e de Orientação (CAO) acolhem migrantes do acampamento de Calais, tal medida apenas foi aplicada marginalmente. Se desta vez viesse a ser aplicada de forma mais rigorosa, a atractividade das partidas para os CAO diminuiria drasticamente. O Ministério da administração interna, que não esteve disponível para responder às perguntas deste jornal sobre as suas intenções nessa matéria, fez saber posteriormente em Calais que não existirá tal rigor. Mesmo assim, é um assunto que preocupa as associações de apoio aos migrantes, que serão recebidas terça-feira 20 de Setembro por dois ministros. A margem de manobra do ministro da administração interna é muito estreita, entre a necessidade de não reenviar migrantes para a Itália e para a Grécia, caso queira obter êxito na evacuação e desmantelamento do maior bairro da lata de França, e o direito comunitário que o obriga a fazê-lo. Para melhor vincar a sua posição, o Ministério da administração interna (em França, Ministério do Interior), informou na passada quinta-feira que 1.346 pessoas "em situação irregular" foram expulsas de Calais desde 1 de Janeiro deste ano.
Qualquer que venha a ser a decisão final, os dirigentes das associações, que a governadora civil (prefeita, em França) Fabienne Buccio recebeu no passado dia 15, estão preocupados. "Muitos habitantes do acampamento vão desaparecer na paisagem, esconder-se, passar à clandestinidade. Após o desmantelamento da zona sul, no inverno passado, uma centena de menores desapareceu dos radares, sumiram-se", lembra Christian Salomé, dirigente máximo da associação Estalagem dos migrantes e observador atento. "Caso a expulsão do bairro da lata seja efectiva, sem alternativa adaptada e sem ter em conta a necessidade de assumir a protecção dos menores isolados, previne por seu lado Jean-Maria Dru, presidente de Unicef França, será uma cataástrofe." Conjuntamente com Médicos do Mundo as Unicef francesa e inglesa acabam de subscrever um alerta comum, ao qual a governadora civil responde que tudo o que seja necessário será feito.
Mostrar firmeza
"Tudo isto teria sido evitado, se o Estado nos tivesse dado ouvidos", lembra Medhi Dimpre, da associação "Réveil voyageur". "Tínhamos avisado que agrupar todos os migrantes numa imensa "selva" no meio do campo era suicidário. Só passado ano e meio é que concluíram que tínhamos razão. De qualquer modo, esta evacuação não tem como objectivo melhorar o bem-estar dos migrantes. Se assim fosse, já teria sido feita há muito tempo. Pretende-se, isso sim, dar um sinal de firmeza aos eleitores. Agora que começa a corrida presidencial, o governo quer mostrar que faz alguma coisa." analisa Christian Salomé.
"O ministro da administração interna pretende uma foto sua em pleno acampamento já livre de migrantes. Exactamente como Nicolas Sarkozy se fez fotografar diante das moto-niveladoras que destruíram o centro de alojamento para migrantes de Sangatte [localidade próxima de Calais], em 2002. Foi há 14 anos mas é um eterno recomeço", acrescenta Laurent Roussel, gerente do Café Cabestan, situado ao lado do acampamento.
"Vão desmantelar o acampamento, concordo; levar os exilados, muito bem. Mas é então que o mais difícil começa. Calais vai continuar a ser a cidade mais próxima da Inglaterra. A entrada do túnel sob a Mancha e o porto de atracação dos ferries. Por isso os migrantes nunca vão deixar de convergir para aqui", alerta em voz alta um elemento da oposição de esquerda à presidente da câmara de Calais.
"Não somos ingénuos", responde a governadora civil. "Calais tem de deixar de ser atractiva para os migrantes, de uma vez por todas. Seremos extremamente vigilantes. Desmantelado o actual acampamento, impediremos por todos os meios legais ao nosso alcance que se formem novos bairros da lata." É realmente esse o verdadeiro desafio, e a construção de um muro de um quilómetro ao lado da estrada nacional RN216, no prolongamento de uma rede com 4 metros de altura à saída do acampamento, visa preparar já esse futuro.
Maryline Baumard, Le Monde, 18/19 Setembro 2016, página 10
Tradução e adaptação de António Rebelo
anfrarebelo@gmail.com
Maryline Baumard, Le Monde, 18/19 Setembro 2016, página 10
Tradução e adaptação de António Rebelo
anfrarebelo@gmail.com
Sem comentários:
Enviar um comentário